O Rio enfim tem um Carandiru para chamar de seu — e o Estado assina a certidão
No Rio, uma megaoperação com pelo menos 119 mortos expôs não apenas falhas sensíveis da política pública, mas um convite velado à intervenção externa
Na manhã seguinte ao confronto nos complexos da Penha e do Alemão, a cidade amanheceu em desalento. As ruas guardavam o rastro da noite anterior e o eco das sirenes. O número de mortos, 119 segundo a Polícia Civil, é mais que estatística: é o espelho sombrio de uma política que confunde força com vitória. O governador Cláudio Castro, ladeado pelo ministro Ricardo Lewandowski, anunciou o roteiro de sempre: mais presídios, mais recursos, mais peritos, mais tropas.
O plano soa emergencial, mas repete o velho vício de tratar sintomas com munição. Na coletiva, Castro e Lewandowski prometeram um “escritório emergencial” entre União e Estado, como se o problema fosse de comunicação e não de concepção. O que realmente poderia alterar o curso dessa tragédia está no Congresso: a PEC 18/2025, a chamada PEC da Segurança Pública, que prevê integração nacional das forças policiais sob coordenação da União.
Castro não a mencionou — talvez por não tolerar o que não controla.
A omissão é reveladora: prefere o improviso da guerra ao método da lei. Na sua retórica, o crime é o inimigo absoluto, e a solução, o extermínio. Mas quando o governador usa a palavra “narcoterrorismo”, ele mistura fronteiras jurídicas e morais. Narcotráfico é crime comum, ligado ao comércio ilícito e ao lucro; terrorismo, segundo o direito internacional, é crime político, movido por ideologia ou religião, destinado a provocar pânico e coagir governos. Ao confundir os dois, o discurso oficial tumultua o debate legítimo e pavimenta o caminho para justificar o uso de força sem limite, nem lei.
Foi com esse mesmo vocabulário que Donald Trump ampliou a guerra ao narcotráfico, chamando traficantes de terroristas. Sob essa lógica, os EUA enviaram porta-aviões e submarinos nucleares ao Caribe, matando dezenas de pessoas em águas internacionais, sem processo, sem perícia e sem corpo. O governador do Rio segue essa trilha: chegou a enviar relatório a autoridades americanas classificando o Comando Vermelho como organização terrorista internacional. E um senador fluminense, em publicação no antigo Twitter, pediu que o secretário de Defesa dos EUA bombardeasse a Baía de Guanabara.
Não é coincidência. O discurso do “narcoterrorismo” é o pretexto perfeito para converter soberania em subordinação. A retórica da guerra, quando internaliza o vocabulário estrangeiro, transforma o Rio em laboratório de um modelo importado — e falido.
Nesse contexto, o despacho do ministro Alexandre de Moraes ganha densidade. Vinculado à ADPF 635, exige que o governador e os chefes de segurança prestem contas. Entre as perguntas: qual o grau de força autorizado? Quantos mortos, feridos e detidos? Que armas foram usadas? Houve câmeras corporais? Ambulâncias? Comunicação ao Ministério Público? Essas exigências não são burocráticas — são morais. O STF obriga o Estado a devolver à sociedade o que dela tomou: o direito à verdade.
Porque a letalidade não é destino.
O Brasil já provou que é possível desmantelar o crime com inteligência. Operações como a Carbono, conduzida pela PF com o Coaf e a Receita Federal, recuperaram bilhões sem disparar um tiro. O sucesso está em prender, não em sepultar. E é isso que torna a pergunta inevitável: se há mais mortos do que fuzis apreendidos, mais cadáveres do que presos, pode-se chamar isso de vitória?
Em 1992, o massacre do Carandiru deixou 111 mortos e marcou a história como a face mais brutal do sistema prisional brasileiro. Trinta e três anos depois, o Rio ultrapassa essa cifra com 119 vítimas confirmadas — e, segundo relatos, outras ainda por contabilizar. É o maior massacre já cometido no Brasil sob o comando direto do poder do Estado — no caso, o poder do Estado do Rio de Janeiro. Se no Carandiru a barbárie ocorreu entre muros, agora ela se expande pelas vielas, como se a cidade inteira fosse um presídio a céu aberto.
Na coletiva, o governador repetiu que o Rio precisa de apoio federal, mas suas palavras soaram como provocação: a retórica do “narcoterrorismo” substitui a cooperação pela confrontação e legitima o caos. O Palácio do Planalto respondeu com firmeza, rejeitando qualquer ingerência estrangeira. Ainda assim, o risco permanece — a tentação de transformar a política de segurança num corredor diplomático para operações externas “de apoio”.
Enquanto isso, a Polícia Federal segue outro caminho. Conduziu mais de 170 operações no Estado, apreendeu toneladas de drogas e armas, prendeu lideranças, sem a mesma contagem de corpos. Isso mostra que inteligência é mais poderosa que pólvora. Mas no Rio, a política insiste em inverter a lógica: celebra a força que mata e silencia a que investiga.
A audiência marcada para 3 de novembro será o divisor. O governador, pela primeira vez, terá de explicar uma operação que o próprio Estado chama de sucesso e o país reconhece como tragédia. Não se trata de um embate entre poderes, mas de um teste entre barbárie e responsabilidade.
O futuro da segurança no Brasil talvez dependa dessa resposta: se queremos um Estado que governa com lei ou um poder que mata com discurso. Porque quando o Estado se transforma no seu próprio algoz, já não defende ninguém — apenas confirma que perdeu o direito de comandar.
O que antes era figura de linguagem — o “mundo cão” — agora tem CEP, governador e coletiva de imprensa.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
