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      Maria Luiza Falcão Silva

      PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

      56 artigos

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      O rentismo estrangula o ocidente e corrompe o Sul Global: uma perspectiva inspirada em Michael Hudson

      A soberania pela dívida, e a vida humana pelo lucro financeiro

      (Foto: Aquiles Lins)

      É a expressão mais brutal de um sistema mundial que substituiu a produção pela extração, a soberania pela dívida, e a vida humana pelo lucro financeiro. Enquanto crianças palestinas morrem sob bombas fabricadas por empresas listadas em Wall Street, um mecanismo mais silencioso, porém igualmente mortal, suga as economias ocidentais e corrói o futuro do Sul Global: a financeirização. Michael Hudson, economista norte-americano, professor de economia na Universidade do Missouri do Kansas, e herdeiro da tradição de Adam Smith e Karl Marx, revela o cerne do câncer: vivemos sob um capitalismo rentista. Nele, bancos, fundos de hedge e conglomerados financeiros não financiam indústrias, empregos ou inovação. Especulam. Transformam estradas, água, patentes médicas, imóveis e até dívidas públicas em ativos para extração de renda.

      Daí resulta um mundo onde: - 80% dos empréstimos bancários nos EUA e UE são hipotecas ou operações financeiras auto canceláveis — crédito não produtivo; - Juros, dividendos e aluguéis consomem 40% do PIB estadunidense, ante 25% nos anos 1950 (era industrial); - Empresas como Black Rock (US$ 10 trilhões sob gestão) ditam políticas públicas mais que parlamentos eleitos. Isso não é economia: é um sistema de “vampirismo legalizado”. 

      A Grande Fraude Contábil: Quando Parasitas Viram "Produtores" Em 1993, lobistas bancários reescreveram as regras globais de contabilidade nacional. Lucros financeiros, antes considerados ‘custos’ da economia real como defendia Simon Kuznets - economista responsável por desenvolver a metodologia para calcular o Produto Interno Bruto (PIB) - passaram a ser contabilizados como ‘valor adicionado’.

      Hudson desmonta o absurdo:  "Se um banco cobra juros extorsivos de uma família, isso é registrado  como 'crescimento'. Se a família perde sua casa, o PIB cai. O sistema  premia o estrangulador e pune a vítima". Os efeitos são perversos: 1. Inflação artificial: Especulação imobiliária e com commodities é contada como "criação de riqueza", não furto; 2. Austeridade como política: Governos cortam saúde e educação para pagar juros da dívida transformando Estados em cobradores de fundos financeiros; 3. Fuga fiscal global: Lucros e dividendos de rentistas são isentos de impostos no Brasil (desde 1995) e privilegiados nos EUA. O exemplo brasileiro é didático: o artigo 192 da Constituição de 1988 definia agiotagem como crime e limitava juros. Nunca chegou a ser respeitado.  Bancos o anularam em 1995. Hoje, os 6 maiores bancos nacionais lucram mais que todo o setor industrial. 

      O Retorno da Aristocracia: Rentistas como Nova Nobreza

      Hudson resgata um alerta de economistas clássicos: Adam Smith e John Stuart Mill odiavam rendas improdutivas. Sabiam que senhores feudais, agiotas e monopólios parasitários encareciam a vida e travavam o progresso. Sua solução? Taxar a riqueza improdutiva para financiar bens públicos. Mas o neoliberalismo inverteu a lógica. Criou-se uma ‘neo-aristocracia’: - Senhores da terra digital: Fundos como Blackstone compram milhões de imóveis, transformando gerações em inquilinos perpétuos. Nos EUA, a taxa de proprietários caiu 8% em 20 anos; - Monopólios de vida ou morte: Patentes farmacêuticas encarecem remédios essenciais; empresas como Bayer e Syngenta controlam sementes e cobram royalties até de chuva; - Extrativismo financeiro no Sul: Fundos ‘vulture’ compram dívidas de países emergentes a 10% do valor e processam por 400%. O caso mais famoso é o do fundo Elliott Management, que comprou títulos da dívida argentina após o calote de 2001 por cerca de 20 centavos por dólar e depois exigiu 100% do valor de face, com juros, chegando a obter decisão judicial favorável nos EUA em 2012. O montante que a Argentina foi obrigada a pagar superava 400% do valor originalmente pago pelos títulos. Essa mesma prática tem sido adotada por fundos semelhantes em países africanos como Zâmbia, República Democrática do Congo, Libéria e Moçambique.

      Trump não é causa, mas sintoma. Seu "Projeto 2025" visa desregulamentar ainda mais o rentismo: extinguir o IRS (fisco estadunidense), liberar agiotagem e privatizar terras públicas. 

      Gaza e Ucrânia: Laboratórios do Capitalismo de Saque Aqui, a financeirização mostra suas garras. Empresas fabricantes de armamentos e tecnologias militares como Lockheed Martin, Raytheon e Elbit Systems (esta, fornecedora do exército israelense) não vivem de mercados livres. Dependem de subsídios estatais - 80% do orçamento da Lockheed vem do governo dos EUA; têm a guerra como negócio - ações dessas empresas dispararam após massacres em Gaza. São a expressão do rentismo belicista. Patentes de drones e mísseis geram royalties mesmo quando matam civis.

      Essas três empresas estão entre as maiores beneficiárias dos conflitos armados e do aumento dos orçamentos militares no mundo, incluindo guerras como as da Ucrânia e de Gaza.

      Bancos como JPMorgan Chase e BlackRock financiam colonatos ilegais na Cisjordânia — transformando terra roubada em "ativo financeiro". Hudson é claro: "Gaza é a face visível de um sistema que monetiza a morte". 

       BRICS: Fuga ou Reforço do Parasita?

      A cúpula do Rio (2025) tentou construir alternativas: acordos em moedas locais (desafiando o dólar); Banco de Desenvolvimento do BRICS financiando infraestrutura no Sul Global. Mas Hudson adverte: "Não basta trocar o senhorio".

      Enquanto o bloco mantiver parcerias com multinacionais extrativistas (ex.: Vale e Petrobras com a chinesa Sinopec); ignorar a taxação de rendas improdutivas (terra, recursos naturais, juros); repetir megaprojetos que geram dívidas; o BRICS se arrisca a ser capitalismo de Estado com sotaque do Sul e não ruptura. 

      O Caminho da Desfinanceirização: 4 Pilares para um Novo Sistema

      Hudson propõe uma revolução silenciosa: 1. Socializar o Crédito Bancos públicos devem financiar bens públicos essenciais (saúde, energia limpa, transporte) a juros zero. Exemplo: o BNDES dos anos 1950-70, não o atual refém do mercado.

      2. Taxar o Rentismo, não o Trabalho Imposto progressivo sobre: - Terra urbana ociosa; - Lucros financeiros e dividendos; - Monopólios digitais e patentes.

      3. Cancelar Dívidas Odiosas Como fez a Islândia em 2008: auditorias cidadãs para anular dívidas contraídas por elites corruptas.

      4. Desdolarização RadicalMoedas locais para comércio bilateral (real-peso argentino, real-yuan) e reservas em ouro/cestas de commodities.

      A Humanidade ou o Rentismo

      Gaza, o ressurgimento fascista e a estagnação ocidental são faces da mesma moeda: um sistema que monetiza tudo, até o sofrimento humano.

      O BRICS pode ser ponte para um novo mundo, mas só se enfrentarem o parasitismo interno. Caso contrário, replicarão o Ocidente em versão tropical. Como escreveu Hudson em The Destiny of Civilization:  "A escolha é entre democratizar a finança ou ser devorado por ela. Entre  reconstruir Estados a serviço da vida, ou sucumbir ao feudalismo  financeiro". A hora da decisão é agora. A pergunta que não quer calar: de quem é o futuro, dos povos ou dos fundos?  Fontes: - Hudson, M. “Killing the Host: How Financial Parasites and Debt Bondage Destroy the Global Economy” (2015) - Hudson, M. “The Destiny of Civilization” (2022)

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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