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Emerson Barros de Aguiar

Escritor, bioeticista e professor universitário

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O que podemos fazer?

A política sozinha não sustenta mobilização de longo prazo, é preciso também alimentar o sonho, a esperança e a utopia

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva - 26/08/2025 (Foto: REUTERS/Adriano Machado)

Nas décadas de 60, 70 e início dos anos 80, a esquerda brasileira viveu um momento de intensa mobilização popular. Sindicatos, comunidades eclesiais de base, intelectuais progressistas, a UNE e outros movimentos se organizavam em torno de pautas comuns, unindo a resistência contra a ditadura, a luta por direitos e a construção de alternativas de poder. Esse caldo de cultura progressista resultou na criação do PT, do MST e de uma série de movimentos que davam sustentação a uma prática política voltada para a transformação social. A força estava na base, no corpo a corpo, na capacidade de mobilizar as massas e em dar voz ao povão.

Hoje, a realidade é bem diferente.

A precarização do trabalho, as mudanças na estrutura sindical, o fim das CEBs e a transformação do PT em um partido mais institucional do que de base esvaziaram a militância popular.

A esquerda intelectualizada se fragmentou, ocupando espaços acadêmicos ou digitais, enquanto parte significativa da juventude e das classes populares encontra mais referências fora do campo progressista, muitas vezes no discurso religioso conservador ou no populismo rasteiro de direita.

 Lula, no poder, pede mobilização, mas encontra silêncio. O que antes era uma resposta vibrante, hoje se converte em apatia. Sem a pressão das ruas, resta-lhe a negociação parlamentar, o pragmatismo, num terreno dominado pelo Centrão e condicionado pelo mercado financeiro.

O governo se vê forçado a conceder, para manter avanços estruturais. Se vê obrigado a fazer concessões para preservar conquistas que aliviam a vida do povo, mas que não rompem com a lógica que perpetua desigualdades.

O dilema é evidente: sem povo mobilizado não há transformação profunda, mas para reorganizar a massa é necessário um esforço que enfrenta tanto a inércia política quanto a resistência de um cenário social muito diferente do passado.

Lula segue pressionado a "se virar nos 30", tentando garantir o mínimo, e domesticar sozinho o dragão,  enquanto a ausência de uma vanguarda mobilizadora realmente engajada deixa aberta a pergunta sobre como reconstruir uma força popular capaz de sustentar mudanças profundas e reais.

Sem consciência crítica, não há mobilização duradoura. A militância não pode ser apenas reativa ou dependente de lideranças, mas precisa nascer de um processo educativo permanente, como aquele promovido antes pelas CEBs e pela pedagogia libertadora de Paulo Freire.

Lula, sozinho, não pode carregar essa tarefa. O governo precisa de povo mobilizado, mas o povo só se mexe se sentir que participa de um projeto que lhe pertence, que fala ao seu coração e à sua fé no futuro, sobretudo quando se trata dos jovens.

A saída passa pela reconstrução de um tecido amplo comunitário e solidário.

Mobilizar as bases hoje exige reconhecer que o mundo das décadas de 70 e 80 já não existe.

As fábricas, os sindicatos fortes e centralizados, as CEBs e os espaços de militância estudantil já não têm a mesma centralidade, nem apelo.

A sociedade se fragmentou, o trabalho se precarizou e os canais de mobilização migraram em boa parte para o ambiente digital. Por isso, quem deseja retomar a força popular precisa combinar tradição e inovação.

A mobilização pode advir de movimentos que saibam dialogar com o cotidiano da população, o que inclui organizações comunitárias de bairro, associações de moradores, coletivos culturais e artísticos nas periferias, movimentos sociais ligados à moradia, ao meio ambiente, à juventude e às pautas de gênero e raça. Também passa pelas novas formas de sindicalismo e de organização em setores precarizados, como o que os motoboys atuam, e por redes de economia solidária.

As igrejas que ainda mantêm um compromisso social e libertador, continuam sendo espaços estratégicos.

Além disso, as redes digitais são hoje um terreno inevitável: nelas é possível informar, engajar, disputar narrativas e criar um senso de pertencimento que, se bem orientado, pode se converter em ação efetiva nas ruas.

Quanto a quem pode liderar, não há mais espaço para uma vanguarda única, como houve no passado. Ela pode nascer de diferentes polos: partidos políticos com compromisso real com a base (como o PT, mas também de outros partidos de esquerda), movimentos sociais consolidados como MST e MTST, lideranças comunitárias que tenham legitimidade nas periferias urbanas, artistas populares que dialogam diretamente com a juventude, além de intelectuais orgânicos capazes de traduzir ideias em linguagem acessível. A experiência mostra que o MST, por exemplo, soube se reinventar, dialogando com as juventudes urbanas, pautas ambientais e novas formas de organização, num exemplo válido para todos os outros movimentos.

No fundo, mobilizar hoje significa reencantar o povo com a política, mostrar que ela não é apenas um jogo distante em Brasília, mas algo que toca a vida real: o preço do alimento, a qualidade da escola, a segurança no bairro, a possibilidade de sonhar. Sem isso, qualquer apelo à mobilização soará vazio.

Lula sozinho não conseguirá fazê-lo, mas se movimentos sociais, partidos, artistas, lideranças religiosas e coletivos digitais se articularem, pode-se reconstruir um tecido popular capaz de sustentar transformações reais.

Primeiro, é preciso reconstruir a comunicação popular. As redes digitais devem ser ocupadas não só com conteúdos institucionais, mas com narrativas simples e próximas da vida cotidiana: renda, alimentação, transporte, moradia e segurança. Essa comunicação precisa ser feita em linguagem acessível, criativa e afetiva, utilizando humor, música, audiovisual curto e figuras de referência populares, sobretudo da periferia.

Em seguida, é fundamental reativar a dimensão comunitária. Movimentos sociais, coletivos culturais, ONGs e pastorais podem organizar encontros de bairro, mutirões de solidariedade, rodas de conversa e eventos culturais que reaproximem as pessoas. Esse contato direto cria laços que a virtualidade sozinha não sustenta.

O terceiro passo é investir em formação política e cidadã, mas de modo adaptado ao presente. Isso significa rodas de estudo presenciais e digitais, lives, podcasts e materiais curtos que expliquem, por exemplo, como o orçamento público funciona, o impacto do mercado financeiro nas políticas sociais, ou o porquê de determinadas reformas. Aqui, a pedagogia de Paulo Freire continua sendo referência: ninguém conscientiza ninguém, a consciência nasce do diálogo.

Quarto, é necessário construir agendas unificadoras. No passado, havia grandes causas claras: redemocratização, Constituinte, fim da fome. Hoje, é preciso definir bandeiras que mobilizem transversalmente: emprego, diminuição do custo de vida, acesso a saúde e educação de qualidade, defesa do meio ambiente, luta contra a violência. Essas pautas devem ser formuladas em termos concretos, que mostrem de que maneira o povo é diretamente afetado.

Por fim, é indispensável articular as lideranças. Não há mais uma vanguarda única. É preciso unir MST, MTST, sindicatos, coletivos culturais, lideranças comunitárias, movimentos estudantis, setores progressistas das igrejas, intelectuais orgânicos e comunicadores digitais. Cada um fala para públicos distintos, mas se todos convergirem em torno de pautas comuns, a mobilização ganha densidade.

A política sozinha não sustenta a mobilização de longo prazo, é preciso também alimentar o sonho, a esperança e a utopia, pois, como bem diz o Presidente Lula, só assim podemos acreditar "que um outro país é possível de ser construído!"

Daqui para frente esse será o meu tema único.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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