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Ivan Rios

Sindicalista, historiador, crítico de cinema, escritor, membro do Comitê Baiano de Solidariedade ao Povo da Palestina, graduando em Direito, militante dos Movimentos de Promoção, Inclusão e Difusão Cultural no Estado da Bahia

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O filme "Iracema – Uma Transa Amazônica": uma jornada cruel, real e sem concessões

Filme cruza ficção e realidade para expor as entranhas do Brasil da ditadura, em denúncia estética que segue atual e necessária

Vista de um braço do Rio Caeté em área de manguezal na Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçu monitorada pelo projeto Mangues da Amazônia.  (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

O filme Iracema – Uma Transa Amazônica é uma das expressões mais intensas e originais do cinema brasileiro dos anos 1970. Dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna, rompe os limites entre ficção e documentário para expor, sem retoques, as contradições brutais do Brasil sob a ditadura militar. Sua notoriedade advém não apenas da temática pungente, mas da maneira como traduz a devastação social e ambiental provocada pelo “milagre econômico”, que, na prática, era sinônimo de exclusão e opressão.

Ambientado na recém-aberta Rodovia Transamazônica, o filme oferece uma cartografia humana do projeto de “desenvolvimento” imposto pelo regime. Nele, a jovem Iracema, símbolo da inocência roubada, embarca com o caminhoneiro Tião Brasil Grande numa jornada que revela as vísceras de um país em colapso ético. A força dramática da narrativa transcende o simples roteiro: é um drama de proporções descomunais, pois incorpora, na trajetória da personagem principal, o destino de milhares que foram violentamente empurrados à margem.

A simbiose entre o drama ficcional e o documentário cru não é uma escolha estética casual, mas uma estratégia narrativa que reforça o impacto da obra. Os diretores constroem uma linguagem híbrida que desafia a lógica convencional do cinema. O espectador não sabe exatamente onde termina a encenação e onde começa o testemunho real, e essa indefinição é precisamente o que dá ao filme sua potência visceral. Essa pulsação atravessa o tempo e chega aos nossos dias com vigor surpreendente.

O fato de Iracema ter sido recentemente remasterizado e reexibido prova que seu conteúdo permanece atual. A destruição da Amazônia, a exploração sexual e o projeto político de ocupação seguem relevantes em um país ainda marcado por desigualdade extrema. A obra não envelhece: ao contrário, ela se refrigera no calor da realidade brasileira contemporânea, revelando sua vocação de denúncia que resiste às décadas.

Edna de Cássia, atriz de ascendência indígena, leva à cena não apenas uma força interpretativa singular, mas também a presença vibrante de sua ancestralidade, elemento que confere à obra uma camada simbólica profunda. Em um país historicamente marcado pela invisibilização dos povos originários, sua atuação em Iracema – Uma Transa Amazônica transcende o campo artístico, tornando-se um potente ato de resistência. Ao dar vida a uma personagem vulnerável, explorada e descartada, Edna convoca as múltiplas violências que incidem sobre mulheres indígenas e outras figuras periféricas, frequentemente excluídas das narrativas oficiais. Sua presença em cena é, por si só, um gesto político, uma afirmação que desafia o apagamento sistemático desses corpos nas telas brasileiras.

Hoje, com a popularização de documentários sociais e do chamado “cinema de urgência”, o estilo de atuação presente em Iracema revela-se precursor. O uso do amadorismo como ferramenta política (não apenas estética) serve como denúncia da máquina institucional que oprime e invisibiliza. Edna encarna um corpo que resiste e denuncia ao mesmo tempo, e sua performance pode ser vista como um grito contra a estetização da pobreza. Em tempos de redes sociais e visibilização instantânea, sua atuação nos lembra que nem toda exposição é libertadora.

Por outro lado, o personagem de Tião Brasil Grande se torna ainda mais perturbador quando conectado ao discurso moralizante que tomou conta do debate público recente. A figura do "cidadão de bem", outrora caricata, tornou-se bandeira política de setores conservadores, muitos dos quais defendem pautas regressivas sob o disfarce de civismo e fé. Tião é o protótipo desse moralismo hipócrita: um homem que se diz devoto da pátria enquanto lucra com crimes ambientais e violações de direitos humanos, sobretudo a exploração sexual de uma menor de idade (Iracema). Sua imagem espelha lideranças e influências contemporâneas que, mesmo condenadas por corrupção e abuso, seguem respaldadas por parcelas da população que normalizam tais atitudes.

O machismo estrutural que permeia a composição de Tião também é inquietantemente atual. Ele vê a figura feminina como objeto de barganha, refém do poder masculino que dita as regras da convivência social. Iracema, em sua relação com Tião, é explorada não apenas fisicamente, mas simbolicamente: como território, como promessa, como moeda. A forma como o personagem transita entre a violência e o paternalismo revela as complexas dinâmicas de opressão que sobrevivem sob novas roupagens, hoje visíveis em discursos políticos que romantizam a submissão feminina e defendem “valores da família” enquanto negam direitos básicos às mulheres.

Dessa forma, a atuação de Paulo César Peréio deve ser lida não apenas como representação, mas como alegoria viva e perigosamente atual. Tião é mais que um caminhoneiro: ele é a manifestação do projeto desenvolvimentista que ainda hoje molda políticas públicas baseadas na exploração de recursos naturais e humanos. Em tempos de tragédias ambientais e conivência estatal, Tião permanece assustadoramente real. A interpretação de Peréio, portanto, ultrapassa o campo artístico: ela se torna dispositivo de crítica, revelando o rosto do Brasil profundo que ainda se esconde sob discursos de ordem, progresso e conservadorismo.

No campo estético, a fotografia de Jorge Bodanzky é outro trunfo da obra. As imagens da floresta devastada e da estrada empoeirada compõem uma estética que choca pelo contraste: a exuberância natural se vê amputada pelo avanço da civilização predatória. Cada plano é uma denúncia visual, e cada corte revela o abismo entre o discurso oficial e a realidade no chão amazônico. Essa dimensão visual confere ao filme uma carga sensorial que não permite indiferença.

O uso de som direto, sem dublagens ou retoques, e as músicas características de um Brasil agonizante intensificam ainda mais a sensação de realismo. As conversas, os ruídos da estrada, as vozes em diferentes sotaques — tudo é captado de forma crua, sem lapidação técnica. É nesse ruído orgânico que a obra respira e se afirma como um documentário involuntário (ou nem tanto) da degradação. A escolha de não polir os diálogos mostra a aposta dos realizadores na verdade como matéria estética. Esse, na minha modesta opinião, é o grande trunfo deste filme.

A montagem também merece destaque: ela não se preocupa em suavizar a transição entre cenas, mas acentua a irregularidade como elemento narrativo. Os cortes secos, a alternância entre depoimentos e encenações e o ritmo quase documental criam uma atmosfera de desconforto. É uma experiência estética que rejeita o entretenimento e abraça o impacto emocional. O espectador não assiste passivamente, ele é empurrado para dentro das contradições.

O roteiro, ou melhor, a ausência dele, é uma das marcas mais notáveis e geniais. Grande parte dos diálogos foi improvisada, e isso empresta ao filme um caráter de urgência e espontaneidade. As falas não obedecem à construção clássica de personagens: elas brotam da realidade, refletem os modos de fala locais e estão impregnadas de dor e sobrevivência. Esse recurso acentua a sensação de que não estamos diante de atores, mas de pessoas reais vivendo seu cotidiano.

A crítica social presente em Iracema não se limita a temas ambientais ou econômicos: ela também toca profundamente questões de gênero, exploração sexual e infância perdida. Iracema não é apenas uma personagem: ela é alegoria de um país que devora seus filhos em nome do progresso. Sua vulnerabilidade é retratada sem maquiagem, sem idealizações, tornando cada cena uma acusação contra a estrutura social vigente.

O filme também escancara a lógica colonial ainda presente no país. Tião representa o colonizador moderno, que, com seu caminhão, adentra territórios desconhecidos e transforma a natureza em mercadoria. Iracema, por outro lado, é a terra ferida, a beleza corrompida, a pureza sacrificada. Essa dinâmica reencena, com contundência, o mito fundador do Brasil, agora sob as luzes da ditadura militar à época.

A ironia do título não deve passar despercebida. “Uma transa amazônica” sugere um ato sexual, mas também uma transação comercial e política. O filme é sobre todas essas coisas: a venda do território, a prostituição como ferramenta de sobrevivência e a troca constante entre corpos e bens. Nesse sentido, a obra desconstrói o romantismo da narrativa oficial e expõe seu caráter profundamente violento.

O formato sem concessões do filme o torna difícil de digerir, e é exatamente esse incômodo que o confirma como arte maior. As cenas são longas, por vezes desconcertantes, e obrigam o espectador a encarar aquilo que normalmente é escondido. A ausência de trilha sonora emotiva, a luz natural e os ambientes reais fazem do filme um soco estético que se recusa a suavizar.

A recepção internacional da obra, à época, foi também reveladora. Premiado em Cannes e Berlim, Iracema mostrou ao mundo que o Brasil tinha um cinema capaz de competir em profundidade e coragem com qualquer produção global. Ao mesmo tempo, a censura interna demonstrou que a ditadura reconhecia o poder corrosivo da arte crítica: o filme só pôde ser exibido livremente anos depois de sua conclusão.

A influência de Iracema é visível em outras produções que seguiram a mesma linha híbrida entre ficção e realidade. Filmes como Cabra Marcado para Morrer ou Terra em Transe compartilham esse impulso de denunciar por meio da estética. Mas nenhum deles leva tão longe o jogo entre encenação e espontaneidade, entre drama e documento, como a obra de Bodanzky e Senna.

O legado de Iracema não se restringe à cinefilia: ele se estende à educação, à sociologia, à ecologia e à história. É um filme que precisa ser visto por quem quer entender o Brasil além das aparências. Ele captura um momento específico, mas ao mesmo tempo se projeta como retrato de um país que teima em repetir seus erros. Sua remasterização é uma bênção para as novas gerações que poderão ver — e sentir — o que significa a promessa não cumprida de progresso.

Iracema não tem final feliz, e isso é essencial. Sua trajetória termina em abandono, prostituição e miséria. Mas é esse desfecho que reitera a denúncia: não há redenção possível quando a estrutura social é construída sobre o abuso e a exploração. O filme não oferece soluções — ele exige reflexão e resistência.

Finalmente, Iracema – Uma Transa Amazônica permanece como um legado incômodo na história do cinema nacional. Um filme que rejeita qualquer tipo de maquiagem, qualquer gesto conciliador, e assume sua função de confrontar, provocar e despertar. É uma obra para ser revisitada, estudada e sentida, porque, enquanto existir devastação, pobreza e opressão, Iracema (o filme) continuará necessário.

Ficha técnica

  • Título original: Iracema – Uma Transa Amazônica | Ano de produção: 1974 | Brasil, Alemanha Ocidental
  • Direção: Jorge Bodanzky, Orlando Senna
  • Roteiro: Jorge Bodanzky, Hermano Penna, Orlando Senna
  • Elenco: Edna de Cássia (Iracema), Paulo César Peréio (Tião “Brasil Grande”), Conceição Senna, Lúcio dos Santos, Elma Martins, Sidney Piñon, Rose Rodrigues
  • Distribuidora: Gullane Filmes
  • Produtora: Embrafilme
  • Duração: 91 min

Sinopse - Durante as festividades do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, Iracema, uma jovem indígena de apenas 15 anos, chega com sua família à cidade para cumprir uma promessa religiosa. No entanto, ela decide permanecer em Belém e acaba se envolvendo com a prostituição, influenciada por mulheres mais velhas que já vivem dessa realidade.

Em um cabaré, Iracema conhece Tião Brasil Grande, um caminhoneiro do Sul do país que transporta madeira pela recém-construída Rodovia Transamazônica. Fascinado pelo “progresso” prometido pelo regime militar, Tião oferece carona à jovem, e juntos embarcam numa jornada pela floresta amazônica.

Ao longo da viagem, o filme revela as duras realidades da região: desmatamento, grilagem de terras, exploração sexual, trabalho escravo e a precariedade das condições de vida. A linha entre ficção e documentário se desfaz, expondo com crueza os impactos sociais e ambientais da ocupação da Amazônia.

Tião, inicialmente encantado com o projeto da Transamazônica, começa a perceber as contradições do “Brasil Grande”. Já Iracema, cada vez mais vulnerável, é deixada em um prostíbulo de estrada. Quando se reencontram, Tião está em ascensão, com um caminhão novo e transportando gado, enquanto Iracema está mergulhada na miséria e na prostituição.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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