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Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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O álcool, o Tigrinho e a falsa equivalência

Comparar o álcool ao Tigrinho ignora diferenças estruturais e revela um mecanismo de defesa, não uma reflexão crítica

Maya Massafera e Bruno Matos como "Blogueirinha" (Foto: Reprodução/YouTube/Blogueirinha)

Na entrevista recente de Maya Massafera à drag Blogueirinha, surgiu um momento revelador. Questionada sobre sua publicidade para os jogos online — conhecidos como Tigrinho —, Maya respondeu com uma comparação direta: se esses jogos são perigosos e podem matar, por que então se aceita a propaganda de álcool, que comprovadamente causa mais danos à população brasileira?

À primeira vista, a resposta soa como uma inversão inteligente. No entanto, olhando com mais cuidado, trata-se de uma falsa equivalência.

O álcool, ainda que socialmente nocivo, está regulamentado: há taxação, idade mínima de consumo, restrições publicitárias e campanhas de saúde pública que alertam sobre seus riscos. Já os jogos de azar digitais, em especial quando operam em zonas cinzentas da legalidade, não apenas escapam da regulação como se alimentam da vulnerabilidade financeira de pessoas pobres e endividadas.

Mais do que isso: o álcool tem sua periculosidade internalizada culturalmente — todos sabem que beber pode trazer consequências. Já os jogos online são vendidos sob a promessa de solução mágica: enriquecer do dia para a noite, escapar da miséria, “mudar de vida” com um clique. A armadilha não é só o risco em si, mas a ilusão publicitária de salvação econômica, que captura o desejo inconsciente de sorte e risco e transforma a esperança em compulsão.

Não se trata de relativizar o impacto do álcool — que também é devastador. Mas, na propaganda, a diferença é estrutural: enquanto as campanhas de bebida são obrigadas a mencionar moderação e restrição etária, as propagandas do Tigrinho se escoram em influenciadores que, muitas vezes, sequer alertam sobre a natureza viciante do produto que anunciam.

Esse debate não é novo. A filósofa Djamila Ribeiro, quando fez publicidade para uma marca de uísque, recebeu críticas semelhantes. A diferença é que, no caso dela, a acusação se apoiava no choque de uma intelectual ligada a causas sociais endossar um produto sabidamente nocivo à população que defende. Já no caso de Maya, a questão é mais grave: trata-se de promover uma atividade que, além de viciante, é ainda nebulosa em termos de regulação e claramente dirigida às fragilidades econômicas de quem mais sofre.

A comparação de Maya revela mais sobre um mecanismo defensivo do que sobre uma reflexão crítica. Ao ser confrontada, ela não responde à questão central — a responsabilidade social de figuras públicas diante da publicidade que fazem —, mas desloca a crítica para um terreno paralelo. É a racionalização como recurso: em vez de pensar a própria escolha, abre-se uma cortina de fumaça que tenta transformar tudo em equivalente.

Mas não é. E reconhecer essa diferença é o primeiro passo para cobrar responsabilidade ética de quem fala para milhões e, sobretudo, carrega portas recentemente abertas a um grupo historicamente estigmatizado e descredibilitado por falas públicas exatamente como essa.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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