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Elisabeth Lopes

Advogada, especializada em Direito do Trabalho, pedagoga e Doutora em Educação

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O acerto de contas com a Democracia: entre a Justiça e a ameaça da anistia

Permitir a anistia ou o indulto seria um retrocesso que abriria espaço para novas aventuras golpistas no futuro

Manifestações contra a anistia (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

A sociedade brasileira tem convivido com múltiplas formas de golpes profundamente enraizados nas estruturas sócio-históricas, políticas e econômicas. Esses golpes não se limitam a rupturas institucionais explícitas, mas também se manifestam em práticas cotidianas de corrupção no enfraquecimento deliberado das instituições democráticas, na manipulação da grande mídia e na captura do Estado por interesses privados. Combatê-los exige não apenas ações institucionais, mas também um esforço coletivo de reflexão crítica, conscientização e mobilização social permanente, capaz de questionar privilégios históricos e promover transformações estruturais que fortaleçam a democracia, a justiça social e a soberania nacional.

No dia 2 de setembro, o país parou para assistir, pela TV Justiça, a transmissão inicial do julgamento dos réus do núcleo crucial envolvidos na tentativa de ruptura da ordem democrática. Os brasileiros estão tendo a oportunidade de acompanhar, em tempo real e com amplo acesso pelos diversos meios de comunicação, um julgamento histórico que coloca no banco dos réus, os acusados por organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça, além de deterioração de patrimônio tombado. Dos oito réus apenas Alexandre Ramagem não responde pelos dois últimos crimes mencionados. Trata-se não apenas de examinar responsabilidades individuais, mas também expõe a sociedade à arquitetura de um projeto autoritário que tentou subverter o Estado de Direito e solapar a soberania popular expressa nas urnas.

A ordem democrática arduamente conquistada, após o espúrio regime militar que decepou vidas e o Estado de Direito, a partir de 1964, quase foi dissipada novamente pelas armações delituosas dos réus: Jair Bolsonaro, Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, Almir Garnier, Alexandre Ramagem e Anderson Torres, durante os anos 2022 e 2023, com o fim de restaurar o estado de exceção dos anos de chumbo.

Na manifestação da Procuradoria Geral da República (PGR) constou o pedido de condenação de todos réus: “Todos os personagens são responsáveis pelos eventos que se concatenam entre si. O grau de atuação de cada qual no conjunto dos episódios da trama é questão de mensuração da culpa e da pena, mas não da responsabilidade em si”.

Frente a esse pedido, tanto os advogados que fizeram a defesa de seus clientes na segunda-feira (02/09), como na terça-feira (03/09) tentaram contestar as acusações, analisando os diversas episódios da tentativa de golpe desarticuladamente e não no conjunto a partir da contribuição de cada um, como alegado com preciosidade na peça acusatória lida pelo procurador da PGR, Paulo Gonet, na abertura do julgamento. Um dos advogados, Andrew Fernandes, que representa o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira, destoou de seus colegas ao recorrer à delação premiada de Mauro Cid para sustentar que seu cliente tentou demover Bolsonaro da armação golpista. O argumento, ao mesmo tempo em que buscou aliviar a responsabilidade do general, expôs de forma cabal o ex-presidente como protagonista central do plano do golpe.

Ante a exuberância das provas colhidas pela Polícia Federal que fundamentaram a denúncia da PGR e os argumentos frágeis construídos pelas defesas de seus clientes indefensáveis, é praticamente previsível, como referiu o especialista em Direito Criminal, o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro em entrevista à TV 247: “pra mim, a decisão será unânime, divergência, se houver, será na duração da pena”. Essa expectativa de unanimidade entre os ministros do STF evidencia a gravidade do caso e prepara o terreno para compreender o ineditismo do julgamento em curso por configurar um divisor de águas na história republicana do Brasil. O país ainda não havia testemunhado um processo dessa magnitude envolvendo um ex-presidente da República, oficiais militares de alta patente e figuras públicas ligadas diretamente ao centro do poder político. Trata-se de um momento ímpar que expõe as profundas veias antidemocráticas do ideário bolsonarista a que o povo brasileiro estava submetido, mas também reafirma a força do Estado Democrático de Direito.

Nesse horizonte, a semana que vem atrairá, sobremaneira, a atenção da mídia nacional e internacional pela singularidade do feito jurídico. O país dá um exemplo ao mundo da soberania e altivez da justiça brasileira que não se dobra a pressões seja no plano interno, seja pelas ameaças da sanha autoritária de um país imperialista decadente que não se conforma com a nova configuração geopolítica mundial.

A relevância desse julgamento transcende os réus envolvidos. Simboliza o estágio atual de uma democracia ainda em processo de consolidação, constantemente ameaçada por forças que não a aceitam. O processo judicial contra esses réus não se resume ao resgate de uma justiça factualmente negligenciada no passado pela impunidade dos militares responsáveis pelo sangrento golpe de 1964. Trata-se, sobretudo, de uma decisão com repercussão no futuro.

Nessa materialidade inequívoca, o ministro Alexandre de Moraes, relator da Ação Penal 2668, ao ler seu relatório, destacou: “a história nos ensina que a impunidade, a omissão e a covardia não são opções para a pacificação”. Ao expressar esse argumento, lançou uma crítica direta à retórica hipócrita de parlamentares da direita e da extrema direita e de seus presidenciáveis em 2026, entre estes, o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP). Herdeiro político do espólio de Bolsonaro, Tarcísio defende a anistia com o objetivo claro de livrar seu mentor de uma condenação inevitável, chegando a prometer indulto caso seja eleito.

Em pleno curso do julgamento de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF), o governador se reuniu com integrantes do centrão e com presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), para articular o andamento do projeto de anistia. A oposição avaliou que esse movimento reforça a viabilização da medida. Trata-se de uma manobra inconstitucional calculada para seduzir o eleitorado bolsonarista, que, apesar do visível enfraquecimento do clã, ainda mantém presença razoável nas pesquisas de intenção de voto para as eleições do próximo ano.

É revoltante constatar que a maioria dos parlamentares no Congresso atua sem qualquer compromisso ético ou respeito pela democracia. Cogitar o texto vergonhoso e ilegal do projeto de anistia articulado pelo Partido Liberal de Bolsonaro representa uma afronta direta à integridade do país e ao povo trabalhador que sustenta a nação com esforço diário. Em vez de votar pautas que poderiam melhorar concretamente a vida da população, como o fim da escala 6x1, a isenção de impostos para quem ganha até cinco mil reais e a taxação dos mais ricos, o Congresso prefere priorizar a impunidade dos réus do golpe. Não por acaso, o deputado Rui Falcão (PT-SP) reagiu à desfaçatez de Tarcísio, protocolando junto ao STF pedido de aplicação de medidas cautelares contra o governador, por suposta obstrução de justiça no processo que apura a tentativa de golpe de Estado.

Com o falso discurso de “pacificação da sociedade brasileira”, a extrema direita, em aliança com setores da direita, busca legitimar essa ofensiva com o reforço direto de Tarcísio, mancomunado com os principais aliados de Bolsonaro, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e Silas Malafaia. Essa estratégia não apenas afronta a maioria do povo brasileiro, que em recentes pesquisas, é contrário à anistia, como ao STF, ao tornar inócuo todo o esforço da justiça brasileira no julgamento dos réus que atentaram contra a democracia. O que se apresenta, portanto, não é um gesto de reconciliação nacional, mas sim uma tentativa de deslegitimar o processo judicial em curso, transformando o debate sobre a anistia em escudo político para proteger aliados e manter viva a chama do bolsonarismo no cenário eleitoral.

Permitir o projeto da impunidade/anistia ou o indulto seria um retrocesso absoluto que abriria espaço para novas aventuras golpistas no futuro. Tarcísio retira a máscara de bolsonarista moderado; é, na verdade, um autoritário disfarçado, tal qual seu criador, incapaz de respeitar os limites democráticos. A verdadeira pacificação requer responsabilizar aqueles que atentaram contra a ordem constitucional. O Brasil, ao afirmar a primazia da Justiça, reafirma também a sua soberania e a maturidade de suas instituições diante do mundo.

Nessa conjuntura, a sociedade não pode se limitar à indignação silenciosa, é preciso ocupar as ruas, dar voz à maioria que rejeita a anistia e afirmar que o povo brasileiro não aceita a impunidade. Num cenário de continuidade de golpe, é fundamental debater os rumos do país e fortalecer a defesa da democracia. Amanhã, 7 de setembro, data em que celebramos a Independência do Brasil, o Grito dos Excluídos e Excluídas volta às ruas em diversas cidades, com atos, debates e mobilizações que reafirmam as lutas dos trabalhadores e a resistência popular frente às investidas autoritárias.

O mapa com os endereços e horários da mobilização nas regiões norte, nordeste, centro-oeste, sudeste e sul estão disponíveis em: https://www.ctb.org.br/2025/09/03/faltam-poucos-dias-para-o-7-de-setembro-veja-onde-acontecem-os-atos-do-grito-dos-excluidos-2025-em-todo-o-pais/.

Vem, vamos embora, que esperar não é saber

Quem sabe faz a hora, não espera acontecer! (Geraldo Vandré, 1979).

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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