Nathalia Urban ainda está aqui
Fica o meu agradecimento pela sua existência e pela honra de ter sido considerado por ela um amigo
Meu primeiro contato com Nathalia Urban foi durante o jogo Argentina x México, pela Copa do Mundo do Catar, em 2022, quando a TV 247 transmitiu alguns jogos do torneio em segunda tela com a narração deste que vos escreve. Já conhecia sua competência jornalística, seu profundo conhecimento geopolítico e seu firme posicionamento social em outros programas no canal, mas confesso que, à primeira vista, pensei se tratar de uma “patricinha” de esquerda que não iria rir das minhas piadas e dos meus trocadilhos infames – alguns meio sem graça, confesso – durante a transmissão do jogo. Nada que uma simples frase dita por ela não fosse suficiente para desfazer minha equivocada primeira impressão. Aliás, nós, homens, devemos admitir que ainda nos sentimos um pouco intimidados diante de mulheres com a capacidade e a personalidade que Nathalia tinha.
Fizemos outras transmissões durante a Copa, que, excepcionalmente, aconteceu no mês de dezembro, e depois só voltamos a nos falar em março de 2024, quando estreou o “30 minutos” na TV 247, e eu tive a honra de contar com Nathalia Urban como comentarista do programa às segundas-feiras. Logo na estreia, o futebol mais uma vez estava presente na pauta, com a denúncia de estupro contra o jogador Daniel Alves, um dos laterais que haviam sido convocados por Tite para a Copa do Mundo. Ali começava uma parceria que eu nunca imaginei que pudesse dar tão certo, tanto na tela como nos bastidores. Aproveitando o hype presidenciável que Trump e Lula deram ao termo, eu diria que rolou uma química profissional e pessoal entre mim e Nathalia. Uma afinidade energética, eu diria.
A partir daí, passei a conhecer mais da jornalista e do ser humano que Nathalia foi. A mesma indignação com as injustiças sociais que ela expressava em frente às câmeras, ela também manifestava nas conversas nos bastidores do programa e pelo WhatsApp. Sua visão de mundo era muito ampla, algo que só alguém com o dobro de sua idade poderia ter. A cada troca que tínhamos, era para mim um aprendizado sobre política internacional, sobretudo a respeito dos EUA, o que aumentava minha admiração pelo seu trabalho jornalístico. Lembro quando ela quebrou um pouco do meu encanto com Kamala Harris, então adversária de Donald Trump nas eleições estadunidenses, ao me apresentar seu histórico de repressão à população preta e imigrante dos EUA quando promotora de justiça, e sobre uma lei estadual defendida por ela quando era procuradora-geral da Califórnia, segundo a qual os pais de crianças cronicamente ausentes à escola poderiam ser presos.
Falando nos EUA, fiquei imaginando os comentários que Nathalia faria sobre a fala histórica feita por Lula na ONU e a respeito do aceno feito a ele por Donald Trump. Ganhamos um discurso memorável do nosso presidente, mas ficamos sem a brilhante análise da nossa saudosa jornalista. A Venezuela também era uma preocupação de Nathalia, que não se conformava com o fato de Lula não reconhecer a vitória de Maduro nas eleições daquele país. Segundo ela, a ausência de uma declaração de apoio por parte do presidente brasileiro a um histórico aliado político poderia ampliar a ousadia imperialista dos EUA sobre o país vizinho e interferir na soberania não apenas da Venezuela, mas também de outros países da América do Sul. Embora o presidente dos EUA à época fosse Joe Biden, estamos presenciando agora o Brasil tendo que defender sua soberania diante de ataques perpetrados por Trump, que impôs sanções comerciais sobre o país com o objetivo de interferir politicamente nas decisões do Judiciário brasileiro.
Das longas e boas conversas que tivemos sobre política, sua indignação com o genocídio perpetrado por Israel na Faixa de Gaza era, de longe, o que mais lhe afligia. E apenas os sem alma não se afligem. Defensora da causa palestina, Nathalia emprestou sua voz e sua humanidade na defesa de um povo que vem sendo dizimado sob as câmeras de TV e a omissão de diversos líderes mundiais. Destemida, não se deixava intimidar com os ataques e com as ameaças de morte que recebia por parte de sionistas inconformados com seu posicionamento. Certa vez, me confidenciou um certo medo de uma possível concretização dessas ameaças e disse que estava tomando algumas precauções nas redes sociais. A mulher que deixou a cidade de Santos ainda menina atrás do seu sonho ganhou asas e o coração daqueles que apreciam o jornalismo na acepção da palavra. Ela sabia que podia voar, tinha consciência de seu talento e competência, mas nunca deixou de ser generosa e humilde no convívio profissional.
Dias antes de sua partida, num episódio fatídico que ainda deixa algumas dúvidas quanto aos esclarecimentos dos fatos, ela estava feliz, em lua de mel com o companheiro, e me enviava fotos dos lugares por onde passavam. Nos últimos registros que me enviou, em 9 de setembro de 2024, ela estava na Medina de Túnis, na Tunísia, e me falava sobre a hospitalidade do povo local que, ao saber que ela era brasileira, se aproximava curioso para saber sobre futebol e perguntar pelos jogadores da nossa seleção. O ex-goleiro Dida e o ex-atacante Adriano Imperador, segundo ela, eram os mais falados na região. “Hoje um cara começou a gritar Dida e Adriano depois que eu disse que era brasileira”, escreveu ela, acrescentando que eu faria muitos amigos por lá por causa do futebol. Falou-me das eleições que aconteceriam no país dali a 20 dias e que o único candidato estava “prendendo todo mundo hahaah”. Esta foi a última mensagem que recebi dela.
No dia 23 de setembro estava previsto seu retorno das férias, e eu entrei em contato para avisar que estávamos entrevistando candidatos naquela semana e que “nossa dobradinha” retornaria na semana seguinte. Ela não me respondeu. Achei estranho o silêncio, uma vez que sempre foi muito profissional e comprometida com seu trabalho. No dia seguinte, recebi uma mensagem de um amigo em comum – o historiador Gabo Santos – me dizendo para me preparar para o que iria me dizer: Nathalia não estava mais entre nós. Não poderia ser crível aquela notícia. Como assim? Há poucos dias ela estava feliz em viagem de férias... E tive a impressão de ter sido respondido pelo personagem Chicó, de O auto da compadecida, com seu confuso e enigmático: “Não sei. Só sei que foi assim.” Incrédulo, enviei mensagem para ela no WhatsApp perguntando se estava tudo bem, e fez-se um silêncio.
Fica o meu agradecimento pela sua existência e pela honra de ter sido considerado por ela um amigo. Não nos vimos pessoalmente, mas nossas almas estavam sintonizadas e conectadas na energia da luta por um mundo melhor e mais justo. Siga na luz e em paz!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.