Não te esquecemos, Cancellier!
“Os piores crimes são praticados por poucos, desejados por muitos e tolerados por todos.” — Tácito
Há sete anos, no dia 2 de outubro de 2017, o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, tirou a própria vida. Dias antes, havia sido preso preventivamente na Operação Ouvidos Moucos, comandada pela delegada Érika Marena, integrante da força-tarefa da Lava Jato. A acusação era de suposto desvio de recursos públicos — acusação que nunca se comprovou. O reitor foi levado para um presídio, despido, humilhado, proibido de frequentar o lugar que mais amava, a universidade que dirigia. Tudo por uma imputação completamente surreal. Preso em regime fechado, sob os aplausos entusiastos da grande mídia e de uma opinião pública mobilizada e envenenada pelo lavajatismo, Cancellier não resistiu. Dezoito dias após a prisão, no dia 2 de outubro de 2017, o reitor subiu até o sétimo andar de um shopping center na Avenida Beira-Mar, em Florianópolis, e se jogou. Deixou um bilhete: “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!”
É importante que a família, os amigos, a comunidade universitária e todos aqueles próximos a Cancellier entendam que essa tragédia marcou profundamente muita gente além desses círculos. Ela ocorreu num momento dramático da vida nacional, quando a maior liderança da história brasileira, o atual presidente Lula, foi encarcerado por mais de 500 dias, e houve uma tentativa de destruir todo o campo progressista, a qualquer preço. Muita gente acompanhou o caso de Cancellier. A indignação e a dor dessa tragédia, bem como a compreensão sobre seu significado, se espraiaram por toda uma geração.
Nesta data, cabe sempre fazer essa recordação. Sobretudo porque não houve justiça em relação ao caso. Os responsáveis pelos abusos não foram responsabilizados. As vítimas não foram reparadas. A família de Cancellier foi destroçada — seus irmãos Acioli e Júlio, seu filho Mikhail, todos carregam até hoje a dor de uma perda que poderia ter sido evitada.
Cancellier não foi o único. Naquele 14 de setembro de 2017, outros seis professores da UFSC foram presos junto com ele, além de outras seis pessoas levadas em condução coercitiva. Treze vidas destroçadas. Profissionais sérios da educação pública tiveram suas carreiras e reputações manchadas por acusações que nunca se sustentaram. Anos depois, todos foram absolvidos. Não foram encontradas provas contra nenhum deles. Mas o reconhecimento da inocência veio tarde demais, depois de terem sofrido terríveis adversidades financeiras e jurídicas. Gastaram fortunas com advogados, ficaram desempregados, perderam amigos, viram suas vidas desmoronarem. Toda a comunidade universitária da UFSC — professores, funcionários e alunos — foi profundamente atingida, o que abalou a reputação de uma das principais universidades do país.
A Lava Jato foi executada por poucos, como diria Tácito, mas apoiada por muitos e tolerada por quase todos. Poucos ousaram os crimes, as violações, os abusos que marcaram aquela operação. Mas muitos desejaram que aquilo acontecesse. Setores da mídia, do Judiciário e da sociedade civil estavam engajados numa campanha nacional de cunho golpista. O lavajatismo era, na essência, um desejo de atingir Lula e travar o processo de mudanças sociais no país. Para levar adiante essa campanha, foi preciso aceitar um enorme nível de destruição no país. “Fiat iustitia, et pereat mundus” — “Faça-se justiça, ainda que pereça o mundo”. Essa máxima romana perigosa e idiota guiou os lavajatistas, que aceitaram sacrificar o país inteiro em nome de um objetivo cínico e falso, como depois ficou claro, de combater a corrupção. E todos — quase todos no Brasil — consentiram. Essa tolerância generalizada foi o que permitiu que a tragédia se consumasse.
Hoje, em tempos em que setores da direita brasileira reclamam de “ditadura judicial” e violação de direitos humanos, é fundamental lembrar o que fizeram com o reitor Cancellier. Os mesmos que hoje acusam o Supremo Tribunal Federal de perseguição foram os que aplaudiram entusiasticamente quando Cancellier foi humilhado e preso.
Érika Marena, a delegada que comandou a operação que levou ao suicídio do reitor, foi promovida após o caso. Em 2019, quando Sérgio Moro se tornou ministro da Justiça do governo Bolsonaro, ela integrou sua equipe de transição. Aposentou-se em 2025 sem jamais responder pelo que fez. Procuradores federais direta ou indiretamente envolvidos no processo tampouco foram responsabilizados. Entre as consequências nefastas desse tipo de operação está a consolidação, no Estado de Santa Catarina, de uma cultura política de extrema direita, hostil à universidade, que deu 69,27% de votos a Bolsonaro no segundo turno de outubro de 2022.
Tácito também escreveu: “Roubar, massacrar, saquear, eles chamam falsamente de império; e onde fazem um deserto, chamam de paz.” A Lava Jato destruiu milhões de empregos, aniquilou os setores mais avançados da nossa indústria, paralisou todas as obras de infraestrutura do país, desqualificou e caluniou as comunidades acadêmicas e os setores criativos do país inteiro. Fez o desenvolvimento nacional perder dez anos. O lavajatismo também deixou um deserto como legado. E chamaram aquilo de combate à corrupção. Deram o nome de justiça ao que foi, na verdade, destruição. Mas justiça não é isso. Sua meta nunca pode divergir daquela da política, senão perde o sentido. Ambas devem promover o bem, a paz e o bem-estar da população. Quando se afasta disso, quando se torna vingança, quando destrói em vez de construir, deixa de sê-lo.
A única maneira de garantir que tragédias como a de Cancellier não se repitam é através da mudança da cultura política e jurídica de todo o nosso sistema de justiça e repressão. Um sistema que preze o garantismo, a moderação, o direito dos réus. Tudo aquilo que a direita brasileira sempre combateu. Esperemos que agora, quando ela tem vários dos seus condenados e pede direitos humanos para eles, ela aprenda que isso vale para todos. Que os direitos humanos não são privilégios de alguns, mas garantias de todos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.