Não bula com meu Nordeste
"A falsa superioridade e o velho projeto de exclusão"
O encontro separatista realizado no Paraná, com a presença dos governadores Jorginho Mello (PL-SC), Ratinho Júnior (PSD-PR) e Eduardo Leite (PSDB-RS), trouxe à tona um ressentimento antigo, travestido de projeto de futuro. Não é de hoje que setores do Sul tentam sustentar uma narrativa de superioridade, como se eles fossem a locomotiva de um país e o Nordeste o vagão que os atrasa. O que se viu ali foi mais do que um devaneio político: foi uma tentativa de criar um universo paralelo, em que a história começa no Sul, o progresso tem sotaque europeu e o resto do país é peso morto. Nesse enredo fictício, tudo que escapa a esse padrão ilusório é descartável.
Quem são esses governadores? Jorginho Mello, figura alinhada ao bolsonarismo, conduz uma gestão marcada pelo conservadorismo e por prioridades excludentes. Ratinho Júnior que se projetou politicamente à sombra do pai apresentador, ascendeu embalado por nepotismo midiático e sobrenome conhecido transformado em capital eleitoral. Já Eduardo Leite que tenta se posicionar como liberal moderno, mostrou seu despreparo diante da maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul. Em vez de liderar com firmeza, sua gestão foi marcada por falhas logísticas, promessas vagas e uma comunicação voltada mais à imagem do que à urgência da reconstrução. Nenhum deles demonstrou preparo ou legitimidade para propor qualquer debate sério sobre os rumos do país — muito menos sobre uma ruptura institucional.
A fala de Jorginho Mello (PL), feita durante um evento da construção civil em Curitiba, escancarou esse espírito de exclusão sob a forma de “brincadeira”: “Temos dois candidatos à Presidência da República aqui. Daqui a pouco, se o negócio não funcionar muito bem lá para cima, nós passamos uma trena para o lado de cá e fazemos ‘o Sul é o nosso país’, né?” O tom era descontraído, mas o conteúdo era grave: insinuação de ruptura, desdém pelo restante do país e a velha ideia de que o Sul, sozinho, seria uma nação superior. O detalhe é que sugerir a separação de parte do território nacional não é apenas um comentário infeliz, Pois bem, meu fi, é crime previsto no artigo 359-L do Código Penal, que trata dos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Quando esse tipo de discurso parte de uma autoridade eleita, não é mais piada. É sintoma.
Esses três governadores, abraçados à extrema direita bolsonarista e associados, em maior ou menor grau, a pautas excludentes, não estavam ali por acaso. Eles representam uma “elite” que se recusa a aceitar a pluralidade do Brasil, especialmente quando essa pluralidade vem do Norte e do Nordeste. Suas falas, ora veladas, ora diretas, revelam uma profunda resistência a um país mais justo e mais diverso.
O Brasil nasceu no Nordeste
Quem conhece o mínimo de história sabe: o Brasil começou no Nordeste. Foi ali que a colonização se instalou, que a economia se desenvolveu, que a cultura floresceu. Salvador foi a primeira capital, e Recife um dos centros mais importantes do período colonial. Foi no Nordeste que o Brasil se constituiu como nação, não sem violência: houve a dizimação de povos indígenas, o tráfico de africanos escravizados e a exploração extrema. Mas foi ali também que emergiu uma das culturas mais ricas e autênticas do país, a cultura nordestina, na resistência, na mistura, na criatividade e na força popular.
Em 1808, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, a capital foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro. A partir daí, iniciou-se um processo sistemático de deslocamento do centro político e simbólico do país para o Sudeste. E o golpe seguinte veio com um projeto deliberado de “embranquecimento”, afinal com tantos escravizados, temia-se uma revolta como a do Haiti, o Estado passou a incentivar a imigração europeia, principalmente para as regiões Sul e Sudeste, que naquela época eram pouco habitadas, com o objetivo de “branquear” a população e redefinir a imagem do que seria o Brasil ideal. A centralidade nordestina foi sendo apagada das decisões de poder, da narrativa oficial e da representação cultural. O que antes era berço da história passou a ser tratado como margem.
E como todo projeto de exclusão precisa de sustentação simbólica, surgiu a “indústria da seca”. Por décadas, o Nordeste foi retratado como sinônimo de miséria, atraso e dependência. As novelas, em sua maioria produzidas no eixo Rio-São Paulo, reforçavam estereótipos grotescos, com personagens caricatos e realidades distorcidas. A região era mostrada sempre como se aqui só tivesse, fome, seca, jegue e promessa. Ignorando tudo que brota de sabedoria, coragem e invenção. Pouco importava a diversidade cultural, a riqueza histórica, os saberes populares. O que valia era manter o Nordeste em seu lugar: o de “inferior” no Brasil.
Essa visão alimentou décadas de preconceito. E aqui cabe um parêntese necessário: o preconceito contra o Nordeste não vem apenas de setores conservadores ou separatistas. Ele está também em círculos que se dizem progressistas. É só assistir a lives de esquerda e observar o que acontece quando o apresentador tem sotaque ou é um jovem nordestino. Basta ler os comentários nos chats. Os estereótipos aparecem com a mesma virulência: Zombam do jeitinho de falar, do chiado, do oxente, da origem, da aparência, do conhecimento, como se nordestino tivesse que pedir licença para existir. Vixe Maria, uma xenofobia deslavada.
Eita como a gente incomoda!
O incômodo dos setores separatistas talvez não seja com o Nordeste do passado, mas com o Nordeste do presente. Um Nordeste que pensa, que vota, que elege presidentes. Um Nordeste que já não serve de mão de obra barata para ninguém, que já não abaixa a cabeça para ofensas disfarçadas de piada. Um Nordeste que tem orgulho do próprio povo, da própria história, do próprio sotaque, do “visse”, do “arre égua”, do ‘arretado’, da cabeça erguida mesmo no aperreio.
É justamente por isso que certas elites não se conformam. A região abriga dezenas de universidades federais, institutos de pesquisa, polos de inovação. É líder em energia renovável, referência em cultura, música, literatura, produção acadêmica. Os dados estão disponíveis, só não vê quem não quer.
Mas mesmo com tudo isso, o racismo regional se perpetua. Em 2023, trabalhadores baianos foram encontrados em situação análoga à escravidão em vinícolas do Sul do Brasil. Dormiam em contêineres, comiam restos, eram ameaçados. Isso não é exceção. É reflexo de uma lógica que ainda trata o nordestino como descartável. Quem é nordestino sabe: o preconceito não é invenção. Está na escola, no mercado de trabalho, nas redes sociais, pois o Brasil ensinou a odiar o Nordeste. E vamos ser sinceros que atire a primeira pedra o nordestino que nunca sofreu preconceito dentro do Brasil.
E se ainda há quem duvide da importância do Nordeste, basta olhar para nossas contribuições. Na literatura, de Castro Alves a Itamar Vieira Júnior. Na música, de Luiz Gonzaga a BaianaSystem. Na política, de Bárbara de Alencar a Fátima Bezerra. E, nas mudanças dos rumos do país, da resistência do nosso Dragão do Mar (Chico da Matilde) à liderança de Luiz Inácio Lula da Silva, o melhor presidente da história deste país. O Brasil é o que é porque o Nordeste existe. E oxi, que meu o Nordeste vai continuar existindo como parte do Brasil, vai continuar crescendo, decidindo, incomodando, mesmo que esse bando de abestado não nos aceitem.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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