Lula, filho de Lindu e pai da soberania
Nos últimos discursos, Lula reconfigura a palavra soberania como trincheira popular, confronta os EUA, resgata Tiradentes e convoca o povo a defender o Brasil
Eu já havia pedido que observassem com mais atenção os discursos do presidente Lula. Não porque trouxessem novidades temáticas, mas porque passaram a operar como ferramenta de contraofensiva semiótica. De forma progressiva, Lula deixou de apenas falar para o povo e passou a falar com o povo num nível de elaboração simbólica e estratégica que só é possível a quem conhece o silêncio e o ruído das ruas, os gestos da história e a política dos afetos. Há algo de novo em curso, e quem acompanha com atenção percebeu que os discursos do presidente assumiram, nos últimos meses, um papel central na disputa pela soberania do país.
Lula está usando os eventos públicos não apenas para anunciar obras, mas para narrar o Brasil. Ele reconstrói a memória nacional em tempo real, costura tempos históricos com uma lógica pedagógica popular, e responde em cadeia nacional ao que viraliza nas redes sociais. Há método onde muitos ainda veem apenas carisma. Não é difícil identificar a digital de Sidônio Palmeira nesse movimento, mas o que importa mesmo é que Lula assumiu, com clareza e coragem, a paternidade do discurso sobre soberania. Em vez de fugir do conflito, ele o nomeou. Em vez de terceirizar a linguagem da defesa nacional, ele a traduziu para o cotidiano das famílias brasileiras.
No Vale do Jequitinhonha (24), Lula declarou, "a nossa soberania é feita por esse povo brasileiro que trabalha, que produz". Em Osasco (25), afirmou que "quem manda neste país é o povo brasileiro". Em ambas as ocasiões, a palavra soberania deixou de ser cláusula de preâmbulo e tornou-se trincheira popular. No discurso, o povo não é representado, é constituído como sujeito ativo da história. Isso é performativo, no sentido mais preciso que Austin e Bakhtin nos ensinam. É no ato de falar que Lula produz pertencimento e afirma poder. Não há nada mais gramsciano.
A onipresença de Dona Lindu funciona como antídoto ao culto ao herói viril, típico da ultradireita. Ao recuperar a figura da mãe nordestina, analfabeta e persistente, Lula constrói outra genealogia da autoridade política. No Vale do Jequitinhonha, em um evento voltado à população quilombola, indígena e aos trabalhadores do sertão mineiro, ele relembrou suas origens com precisão biográfica: "Eu sou o melhor exemplo desse país. Eu nasci numa região do Nordeste em que a maioria das crianças morreu antes de completar cinco anos de idade, de fome". Essa fala não é apenas um retrato pessoal, mas uma contraposição direta ao mito do empreendedor de palco. Lula se apresenta como o brasileiro médio, sobrevivente da fome e do descaso, e não como os vendedores de sucesso que prometem ascensão individual à custa da coletividade. Ao contar que foi o primeiro da família a ter diploma primário, a ter um carro, uma geladeira, uma casa, Lula reconstrói a própria trajetória como metáfora da superação popular, coletiva, política. Ele também mencionou os minérios da região, inserindo a questão mineral no centro da disputa por soberania. Ao afirmar que "temos todo o nosso petróleo para proteger, temos todos os nossos minerais ricos que vocês querem, e que nós temos que proteger, e aqui ninguém põe a mão", Lula transformou o palco de Jequitinhonha num campo de batalha semiótica da guerra comercial. A fala ecoa diretamente o que desenvolvi no artigo 'Soberania mineral: o subsolo é político', onde mostro que o Brasil entrou definitivamente no tabuleiro geopolítico da transição energética, e que defender os nossos minérios é também defender a nossa autonomia industrial, digital e ambiental. Ao incluir o subsolo nessa narrativa, Lula eleva a soberania a um patamar estratégico, onde o chão e o que está debaixo dele pertencem ao povo, e não ao mercado internacional.
Lula não inventou o termo, nem precisou teorizar sobre ele. Mas sua prática discursiva recente reconfigurou a palavra "soberania" como signo político da era pós-golpista. Trata-se de uma substituição cirúrgica: soberania no lugar do patriotismo, que o bolsonarismo esvaziou com camisa da Seleção, hino nacional e palanque golpista. Lula devolveu à pátria seu conteúdo popular e material. Ao dizer que "quem produz a riqueza tem direito de recebê-la", ele não está apenas falando de PIB, está reelaborando o lema da classe trabalhadora: "Se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence".
Há uma coreografia de intenções nesses discursos. Lula tem se emocionado menos e endurecido mais. O tom é direto, mas não amargo. Sua linguagem se radicalizou para a esquerda e se enraizou nos temas concretos: gás, aluguel, comida, emprego, Pix, imposto. O presidente compreendeu que o confronto com os Estados Unidos e com as big techs precisa ser travado também no campo da linguagem. E não é por acaso que, ao lado das medidas econômicas, vemos um esforço de narrativa que conecta a trajetória de Dona Lindu à proteção dos dados nacionais, dos territórios e do povo brasileiro.
Enquanto parte da esquerda brasileira projeta em lideranças estrangeiras uma pureza revolucionária inalcançável, erguendo altares para Petro, por exemplo, não hesita em exigir de Lula um heroísmo abstrato, como se governar o Brasil não fosse, por si só, um exercício radical de enfrentamento. Mas Lula não é personagem de fábula. É operário que virou presidente, presidente que virou réu, réu que virou símbolo, símbolo que voltou ao poder com votos reais, sangue real e dilemas reais. E, nesse percurso, virou signo.
Nos últimos meses, a guerra híbrida deixou de ser subterrânea. A ofensiva estadunidense contra o Pix, contra a LGPD, contra o STF, assumiu forma jurídica e retórica. Mas Lula soube dar o troco com um meme: "defende meu pai". A frase, dita com ironia em uma entrevista, viralizou em poucas horas e foi reapropriada com talento pela militância. No Congresso da UNE, Lula completou a mensagem: "o Brasil não será colônia de dados". A disputa não é apenas técnica, é semântica. A linguagem voltou a ser campo de luta, e Lula sabe que quem nomeia, governa.
Essa reconfiguração da linguagem política não se dá apenas pelas falas presidenciais. Ela encontra resposta e continuidade no campo imaginário popular, como mostram fenômenos como o vídeo de Bia Lula, ao imitar e subverter a estética da extrema direita com humor, afeto e firmeza. No lugar do ressentimento, ela ofereceu a figura de uma eleitora millennial de Lula, escancarando a dimensão familiar e coletiva da soberania. O gesto não partiu do governo, mas fortaleceu a narrativa que ele vinha construindo: de que defender o Brasil é também defender os seus: o povo, a política pública, o Pix, a memória de Dona Lindu.
No evento Periferia Viva, em Osasco, em meio ao discurso, um provocador na plateia tentou tumultuar o ambiente. Foi alertado por pessoas ao redor, e a própria multidão elevou a voz para abafá-lo. Lula percebeu e respondeu no ato: "não tem a menor chance". O gesto foi firme, não agressivo, e serviu como metáfora do momento político: a soberania discursiva já não está à venda, nem sob ameaça.
Ele foi ainda mais direto ao afirmar: "A nossa soberania é feita por esse povo brasileiro que trabalha, que produz". E completou, dirigindo-se diretamente a Donald Trump: "Aqui ninguém põe a mão. É do país, é do povo brasileiro". Em resposta à tentativa de pressão dos Estados Unidos, Lula reiterou: "A única coisa que eu peço ao governo americano é que respeite o povo brasileiro, como eu respeito o povo americano". E concluiu com uma advertência que é, ao mesmo tempo, alerta e convocação: "Enquanto vocês estiverem vivos defendendo a soberania desse país, ninguém, de nenhum país do mundo, vai dizer o que a gente tem que fazer". Nesse gesto, Lula não apenas reafirma o papel popular na defesa do Brasil como transfere à coletividade a responsabilidade ativa por sua autonomia. É a consagração da soberania como valor compartilhado, e não mais como retórica de Estado. Ao substituir o patriotismo de farda e hino pela soberania construída na luta e na sobrevivência, Lula oferece ao povo pertencimento que não depende da exclusão do outro, mas da consciência de si.
Nesse mesmo discurso, Lula reabilita uma figura muitas vezes esquecida no imaginário político brasileiro: a do traidor da pátria. Ao rememorar o episódio de Tiradentes e Silvério dos Reis, o presidente desenha uma linha histórica entre a denúncia do passado e a traição contemporânea. "Tiradentes foi traído por Silvério dos Reis", disse, destacando que hoje, os que se diziam patriotas estão "de joelhos diante do presidente dos Estados Unidos, pedindo intervenção no Brasil". A figura do traidor deixa de ser uma abstração histórica e ganha rosto: aqueles que abandonaram o mandato, pedem sanções contra o país e defendem a subordinação nacional. "É pior que Silvério dos Reis. Porque Silvério traiu um homem. Esses estão traindo a nação". Ao fazer isso, Lula constrói um imaginário de combate em que a soberania não é apenas um valor positivo, mas também um critério de julgamento político e moral. A soberania exige lealdade. E a traição, hoje, não é mais uma metáfora, é uma categoria política ativa.
Lula não cansa de falar que é como é porque é filho de Dona Lindu, mas também é pai da soberania, no único sentido que a história popular brasileira pode reconhecer: como construção coletiva, material, afetiva e inegociável.
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