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Marcelo M. Nogueira

Ggraduado em Direito e mestre em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ. Pesquisador em direitos humanos (UFRJ e PUC-RS), foi coordenador executivo da ABJD e atua como colaborador da Comissão de Estudos e Combate ao Lawfare da OAB-RJ)

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Julgamento Histórico: O Supremo Tribunal Federal e o Futuro da Democracia Brasileira

A responsabilização dos golpistas é um passo decisivo para virar a página da impunidade e reafirmar a força das instituições e da democracia brasileira

Julgamento do núcleo 1 da trama golpista (Foto: Antonio Augusto/STF)

A tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília, foi um dos ataques mais graves à ordem constitucional desde a redemocratização. Não se tratou de um ato isolado, mas do ápice de um processo de corrosão democrática, alimentado por desinformação em massa, ataques ao sistema eleitoral, radicalização ideológica e apelos explícitos à ruptura institucional. No dia de hoje, com o início do julgamento do núcleo central dos golpistas — incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro e sete de seus aliados mais próximos — pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, o país chega a um ponto decisivo para o futuro da democracia. A ação penal, que acusa os réus de crimes como tentativa de golpe de Estado, organização criminosa armada e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, não busca apenas punir indivíduos, mas reafirmar os pilares do Estado Democrático de Direito e impedir que o Brasil reviva ciclos autoritários que sempre marcaram a história da região.

A memória do 8 de janeiro remete inevitavelmente aos legados da ditadura militar (1964-1985), instaurada por um golpe civil-militar que suprimiu liberdades e institucionalizou a violência estatal. Como lembram as historiadoras Lilia Moritz Schwarcz e Ynaê Lopes dos Santos, o país carrega uma tradição autoritária que nasce no período colonial e escravocrata e se perpetua em práticas negacionistas e na impunidade seletiva. O bolsonarismo, ao glorificar torturadores e relativizar violações de direitos humanos, apenas atualizou esses mecanismos para o século XXI, utilizando redes sociais e alianças internacionais para ampliar seu alcance. A invasão de 2023, com prejuízos gigantescos e afronta direta à soberania popular, ecoa 1964 — mas, desta vez, o ataque se deu em uma democracia consolidada, o que torna a resposta institucional ainda mais urgente.

A punição, nesse contexto, é mais que um ato jurídico: é um gesto de reparação coletiva e de construção de memória. O eminente jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni lembra que o direito penal deve ser excepcional, mas firme quando a democracia está em jogo. Para o professor platino, punir golpistas não é vingança, mas uma reafirmação dos limites éticos e jurídicos que sustentam o convívio democrático. “Não se pode permitir que o Direito Penal seja instrumentalizado pelo autoritarismo, mas tampouco que o autoritarismo atue impunemente em nome da liberdade”, adverte.

A cientista política argentina Pilar Calveiro, estudiosa das ditaduras do Cone Sul, segue na mesma direção. Em sua obra Poder e Desaparecimento (1998), ela mostra que práticas autoritárias sobrevivem mesmo após a queda de regimes, sustentadas pela negação, pela impunidade e pela criminalização da memória. O silêncio, lembra, é um dispositivo de poder. No Brasil, o bolsonarismo ativou novamente esses mecanismos, aliado a milícias digitais, setores religiosos fundamentalistas e redes transnacionais de extrema-direita. Sem punição, a violência de 2023 pode se tornar apenas o prelúdio de novos ataques à democracia.

Já a socióloga argentina Elizabeth Jelin, em Los Trabajos de la Memoria (2002), insiste que a democracia exige uma memória ativa, que encare os traumas do passado. Para ela, “o esquecimento é sempre político”. A responsabilização dos golpistas não é apenas jurídica, mas também simbólica: reconhece vítimas, fortalece instituições e corrige os erros da transição democrática, marcada por uma Lei da Anistia que impediu a responsabilização de torturadores. O julgamento de 2025, nesse sentido, é uma oportunidade histórica de romper o ciclo de impunidade e alinhar o Brasil ao movimento global de justiça de transição descrito pela cientista política estadunidense Kathryn Sikkink em The Justice Cascade (2011).

Outros estudiosos reforçam esse ponto. A especialista em justiça de transição Priscila Hayner alerta que, sem responsabilização judicial, comissões da verdade perdem eficácia. No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade revelou crimes da ditadura, mas a anistia bloqueou punições. O jurista brasileiro Paulo Abrão argumenta que essa impunidade criou terreno fértil para a repetição de práticas autoritárias, algo que o 8 de janeiro comprova. O professor de Ciências Sociais da UFRN, Gabriel Vitullo, acrescenta que os modelos de transição que priorizam a estabilidade em detrimento da justiça acabam por permitir a perpetuação de elites autoritárias.

O 8 de janeiro não foi um ato desorganizado. Relatórios da Polícia Federal e do STF indicam que Bolsonaro e seus generais mais próximos — Braga Netto, Heleno e Paulo Sérgio Nogueira — discutiram decretar estado de defesa ou de sítio, mobilizando forças militares e civis. A invasão do Congresso, do Planalto e do STF simbolizou o desprezo pela institucionalidade. Mais de 1.400 pessoas já foram condenadas por participação secundária, mas o julgamento iniciado em setembro de 2025 foca no “núcleo duro” da trama.

A Ação Penal 2668, relatada pelo ministro Alexandre de Moraes, acusa Bolsonaro e aliados de planejar e incitar a tentativa de golpe. Entre os réus estão o almirante Almir Garnier, o brigadeiro Carlos Baptista Júnior e o tenente-coronel Mauro Cid, cujo depoimento delatado foi peça-chave. A Procuradoria-Geral da República sustenta que o grupo visava abolir o Estado Democrático de Direito. A defesa, por sua vez, alega liberdade de expressão. Mas as provas incluem reuniões no Alvorada e movimentações logísticas que desmontam o argumento da “mera retórica política”.

O julgamento marca um divisor de águas. Em 1985, a transição negociada blindou militares de qualquer responsabilização. Agora, o Brasil se aproxima de vizinhos como a Argentina, onde ex-ditadores foram condenados. A pressão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia, 2010), que condenou o Brasil por não investigar desaparecimentos forçados, também pesa. O processo pode consolidar precedentes sobre crimes contra a democracia.

Mas a ameaça não é apenas interna. A engrenagem golpista ganhou extensão internacional, principalmente por meio da atuação do deputado Eduardo Bolsonaro. Licenciado desde janeiro de 2025, ele atua dos Estados Unidos em articulações contra o Judiciário brasileiro. Reportagens da Folha de S.Paulo, do Washington Post e da CNN Brasil revelaram que ele participou de reuniões com aliados de Donald Trump, defendeu a aplicação da Lei Magnitsky contra Moraes e apoiou tarifas de até 50% sobre produtos brasileiros como forma de retaliação. Eduardo também montou uma “bancada anti-Moraes” no Congresso americano. As ações são investigadas no STF por desestabilização institucional e lavagem de dinheiro.

Esses movimentos mostram que o projeto autoritário de 2023 não acabou: apenas se internacionalizou. Se antes os ataques eram físicos, hoje se expressam em sanções econômicas, guerra jurídica e redes globais de extrema-direita. Como alertou o sociólogo espanhol Juan Linz, democracias caem quando elites deixam de proteger as instituições.

É nesse ponto que convergem os ensinamentos de Zaffaroni, Calveiro, Jelin, Sikkink, Hayner e Abrão: punir golpistas não é vingança, mas condição de sobrevivência democrática. Zaffaroni lembra da necessidade de firmeza; Calveiro, do risco da impunidade; Jelin, da importância da memória; Sikkink, da cascata global de justiça; Hayner, da integração entre verdade e responsabilidade; e Abrão, do caso brasileiro em particular.

O silêncio do passado já custou caro. O 8 de janeiro não pode se tornar outro capítulo esquecido. Ao julgar e punir os responsáveis, o STF não apenas aplica a lei, mas constrói uma narrativa de resistência. A historiadora Lilia Schwarcz pontua que o autoritarismo brasileiro é estrutural e exige vigilância constante. A professora da UFF Ynaê Lopes dos Santos nos alerta que o autoritarismo brasileiro não é um desvio, mas parte de uma estrutura histórica sustentada pelo racismo e pela desigualdade. A justiça é o único caminho para a verdade, a memória e a reconstrução democrática. A história não se repete sozinha: repete-se quando a impunidade a convida a voltar.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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