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Helena Iono

Jornalista e produtora de TV, correspondente em Buenos Aires

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Histórica manifestação por Cristina Livre. O peronismo se reorganiza e promete que “vai voltar”

A pressão social a favor de Cristina tem sido enorme

A ex-presidente argentina Cristina Fernández de Kirchner em uma sacada, no dia em que o Tribunal Federal de Apelações Criminais confirmou uma sentença de prisão por suposta corrupção na concessão de obras públicas durante sua presidência, em Buenos Aires, Argentina, em 13 de novembro de 2024 (Foto: REUTERS/Matias Baglietto)

O mundo inteiro está de olho nos efeitos político-sociais que produziu mais este descalabro do lawfare contra Cristina Kirchner. O dito partido judicial-midiático que assegura o poder hegemônico das grandes finanças internacionais, arraigado na Argentina e sustentado pelo governo libertário de Milei, decidiu condenar a ex-presidenta (da melhor década do início do século), mulher, e líder de massas dos últimos tempos na América Latina. Uma condenação a 6 anos de prisão e proscrição perpétua a exercer qualquer cargo público. Sentença infundada, no mesmo estilo do ex-juiz Moro contra o presidente Lula: sem provas, mas com convicções. Além da transcendência mundial – pois chegou para ser questionada na Corte Internacional da Justiça, em Haia, e na Corte Interamericana de Direitos Humanos –, a condenação emitida pelo máximo órgão de justiça argentino (Corte Suprema), composto de apenas 3 juízes (2 deles colocados a decreto pelo ex-presidente Macri), despertou uma rebelião social contra o governo.

Ontem, 18 de junho, foi um dia histórico. Uma multitudinária manifestação de 1 milhão vindos de todo o país, rumo à Praça de Maio, reproduziu a memória e a força do povo argentino que, em 17 de outubro de 1945, no “Dia da Lealdade Peronista”, saiu às ruas para exigir a libertação de Peron, então Secretário do Trabalho e Ministro da Guerra. Hoje foi um dia por “Cristina Livre” e em defesa da democracia ameaçada. Todos dizem: defender a Cristina é defender os direitos sociais, trabalhistas e humanos concedidos e nascidos com Peron/Evita, destruídos por Menem e De La Rúa, e recuperados nos 12 anos do governo de Nestor e Cristina Kirchner. Direitos que estão sendo proscritos por Milei. O povo argentino tem história e a memória dos 30 mil desaparecidos. Cartazes do “Nunca Mais ditadura” estão presentes.

Desde o dia do anúncio da condenação à Cristina Kirchner, há um desfile permanente de manifestantes diante de sua casa, repudiando a injustiça, agradecendo seu legado, com faixas: “Força Cristina!”, “Cristina Livre”. Nestes dias, a ex-presidenta se comunicou, mesmo sem poder falar, saudando com gratidão e solidariedade através da sua varanda. Passada uma semana, temendo a anunciada quilométrica manifestação que a acompanharia ao tribunal de Comodoro Py (para o ditame sobre o local e a modalidade da prisão), os juízes decidiram conceder-lhe a prisão domiciliar. Inclusive, hoje, tiveram que voltar atrás na absurda restrição a sair na própria varanda residencial.

A pressão social a favor de Cristina tem sido enorme. Nesse 18 de junho, num dia normal de trabalho, num vai e vem, da manhã à noite, um milhão de pessoas chegaram à Praça de Maio, mesmo com um anormal controle policial nas estradas sobre as caravanas provenientes do interior; o protesto transbordou nas capitais de todo o país; uma massa humana solidária circundou a casa de Cristina Kirchner. E a ex-presidenta não dependeu de uma varanda para fazer ecoar sua voz na praça, com um discurso de 8 minutos gravado, que chegou a todos os cantos do país, através do canal de TV C5N e meios comunitários. Suas palavras foram recebidas com silêncio, atenção e lágrimas.

Como dizem, o governo decidiu passar do jogo de damas ao xadrez e golpeou a rainha. Mas o seu tiro saiu pela culatra. Diante da sua crise econômica e social incontrolável, o dito Partido Judicial, apoiado pela mídia hegemônica (Clarin, La Nación), levou um gol contra. Aprovaram uma sentença infundada para impedir a simples candidatura de Cristina a deputada da legislação de um distrito provincial, e provocaram uma rebelião social de norte a sul do país que a convalidou como líder nacional. Por isso, o povo, votando com os pés na rua, não diz só “Cristina inocente!”, mas sim: “Voltar! Vamos voltar!”. Reascendeu-se a força do peronismo desarticulado nos últimos tempos.

Estiveram presentes todas as forças políticas, com notável participação juvenil, e puseram um limite às ameaças à democracia. Desde o Partido Justicialista (PJ – do qual Cristina é presidenta), a todas as centrais (CTAs, CGTs, ATEs) e movimentos sindicais (bancários, metalúrgicos (UOM), professores, funcionários públicos, jornalistas, artistas, cientistas, etc...) movimentos sociais (Pátria Grande, Evita, Movimento Direito ao Futuro, A Câmpora, Frente Renovadora, etc...), Mães e avós da Praça de Maio, partidos da esquerda (PO, FIT, MST); todos, sobretudo famílias vindas dos bairros, da classe média empobrecida, jovens, desempregados na área da saúde (Hospital Garrahan e outros), do ensino público, da cultura, dos Direitos Humanos (museu ESMA). Moveram-se imigrantes da Bolívia, Colômbia, Uruguai, Brasil e outros. O núcleo do PT marcou sua presença, bem como o deputado Paulo Pimenta que anunciou a provável visita de Lula à Cristina Kirchner, por ocasião da reunião do Mercosul em julho, na Argentina. A comunidade argentina no exterior desencadeou a formação de comitês por “Cristina Livre”, começando pela América Latina onde o kirchnerismo teve um papel fundamental para a sua integração dentro da Celac à Unasul.

Esta quarta-feira, 18 de junho, abre um novo capítulo, reascende uma espécie de autoestima e união popular abalada pelo individualismo de auto-defesa, pelo ódio induzido por libertários carcerários. Abre-se a chance de recuperar a memória do aguerrido povo argentino.  A injusta sentença contra Cristina, despertou notavelmente a juventude; o ânimo dos setores desorganizados e unificou nas ruas o peronismo e toda a oposição política. Peronistas e não peronistas saíram às ruas para conversar sobre o que ganharam com Cristina e o que perderam com Milei. 

A importância desta manifestação é mais qualitativa que quantitativa. Inclusive dentro de um contexto internacional muito complicado. Foi uma manifestação transversal de toda a sociedade, de reencontro consigo mesma; contra o clima de ódio e violência instigado por redes sociais e ações oficialistas contra opositores, pondo em risco a democracia. O governador de Buenos Aires, a mais populosa do país, Axel Kicillof, disse: “Esta é uma tentativa de disciplinar a base, a liderança, os sindicatos e todos os demais. Mas não tem como, porque nosso povo está sobrecarregado pela necessidade de mais e melhores empregos, o oposto do modelo de Milei."

Certamente, agora falta saber como o peronismo vai sair desse impasse, política e eleitoralmente. Os protestos se avolumam nas portas de fábricas fechadas. Enquanto os supermercados estão vazios, pequenos comércios desaparecem; escolas privadas fecham. O desemprego massivo chega a 1,2 milhão; famílias e jovens sem-teto abundam calçadas dos grandes centros urbanos como nunca visto na Argentina. Tudo isso fala mais que os números. O recado das multidões de 18 de junho, acolhido e sintonizado por Cristina, é um chamado à união de referentes políticos como o governador Axel Kicillof, Juan Grabois, Sergio Massa, Máximo Kirchner; de busca de representatividade nas bases, em torno a projetos sociais de transformação e com comunicação popular.

Aqui vai a mensagem completa de Cristina Kirchner, que levou o povo às lágrimas, e à decisão de voltar a participar e entrar em cena.
Cristina, com sintonia fina, sintetizou o sentimento das pessoas que têm ido à porta da sua casa, reivindicando um país como o que havia deixado em 2015, onde as crianças comiam quatro vezes ao dia, onde as escolas tinham livros e computadores, onde os trabalhadores conseguiam sobreviver, chegar no fim do mês e conseguiam comprar algo, uma casa, um carro, e os aposentados recebiam seus remédios gratuitos. "Aquele país não era uma utopia. Nós o vivemos. Foram doze anos e meio de vida. E também o deixamos livre de dívidas, assim como famílias e empresas."


Além de relembrar as experiências desastrosas de Martinez de Hoz em 1976 e de Cavallo em 1990 que terminaram do mesmo jeito, atacou a reincidência de Caputo via Milei seguindo um modelo não diferente dos do passado, que está desmoronando “não apenas porque é injusto ou desigual; mas, porque é economicamente insustentável. Ele tem uma data de validade, como o iogurte”.
“Há que organizar-se para clarificar qual é o verdadeiro problema que tem nosso país.” Aqui Cristina dá a entender que as lideranças têm que melhorar muito na comunicação popular.

“Não sei o que o futuro próximo me reserva; não tenho bola de cristal. Mas já vivi uma ditadura que fez desaparecer 30 mil companheiros, vivi tentativas de saque do país, vivi o sacrifício de Néstor e também uma tentativa de assassinato. A verdade é que não me faltou nada nestes anos. E, apesar de tudo, aqui estou.”

“Podem me encerrar, mas não todo o povo”

E terminou: “Vamos voltar e com mais sabedoria, mais unidade, mais força e desde onde eu tiver que estar, em qualquer trincheira, vou fazer um esforço para estar aí com vocês, como vocês tem estado junto a mim. Porque nós temos algo que eles jamais terão, nem vão poder comprar, por mais dinheiro que tenham. Temos povo, memória, história e pátria. Vamos voltar, argentinos e argentinas! Voltaremos. Voltaremos mil vezes, como se fez desde o fundo da história. Os povos, no final, sempre voltam”.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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