Fraturas expostas do racismo à brasileira. Até quando?
O racismo à brasileira não grita — sussurra; não se assume — disfarça-se; e, por isso mesmo, torna-se o mais cruel dos preconceitos.
O racismo, no Brasil, é uma doença antiga que atravessa séculos, camuflada sob a capa da cordialidade nacional. É um veneno que se disfarça em elogio, que se mascara em silêncio, que prefere as sombras do inconsciente às luzes do confronto aberto.
É o racismo que nos acompanha desde a infância, tão presente quanto sarampo ou catapora, tão naturalizado quanto as dores da primeira dentição. Crescemos com ele impregnado em nossas relações, nos ditados populares, nas piadas repetidas, nos padrões de beleza impostos. E, de tão enraizado, já não percebemos quando o praticamos. Mas a invisibilidade não anula a culpa — apenas a agrava.
O racismo à brasileira é vil porque tenta sempre escapar ileso, fingindo inocência. É torpe porque golpeia no momento inesperado, humilhando a vítima sob o disfarce de uma suposta normalidade. É cínico porque sobrevive alojado em nosso inconsciente, como aquele Voldemort que se escondia no turbante do velho professor em Harry Potter: invisível, mas ativo, manipulando, sussurrando, maquinando o mal.
Será que não carregamos, cada um de nós, um Voldemort de estimação em nossas cabeças? Quantas vezes não repetimos frases ou pensamentos que, quando examinados de perto, revelam a persistência da desigualdade racial que fingimos já ter superado?
A Casa Universal de Justiça, em 1986, alertou que “o racismo, um dos males mais funestos e persistentes, constitui obstáculo importante no caminho da paz” e que sua prática “consuma uma violação demasiado ultrajante da dignidade do ser humano para poder ser tolerada sob qualquer pretexto”. Quase quarenta anos depois, a advertência permanece de urgência desconcertante, como se escrita hoje.
As estatísticas mostram o abismo: de acordo com a pesquisa da antropóloga Lilia Schwarcz, 99% dos entrevistados afirmam não ser preconceituosos, mas 98% dizem conhecer alguém que é. Eis o paradoxo: a nação inteira se declara isenta de racismo, mas aponta o vizinho como culpado. A contradição não resiste a um minuto de silêncio interior.
No Brasil, os números recentes escancaram a desigualdade racial. Segundo o IBGE, pretos e pardos representam 56% da população, mas respondem por mais de 75% entre os 10% mais pobres. No mercado de trabalho, o rendimento médio de pessoas negras equivale a pouco mais da metade do rendimento de pessoas brancas. Quando se trata de violência, a chaga é ainda mais profunda: o Atlas da Violência 2024 mostra que jovens negros têm 2,6 vezes mais chances de serem assassinados do que jovens brancos. No sistema prisional, cerca de 67% da população carcerária é negra. Esses dados não apenas confirmam a persistência do racismo estrutural, mas revelam sua face mais cruel: a naturalização da desigualdade como se fosse destino inevitável.
Cansado de ouvir a ladainha dos que negam sua própria sombra, recordo os versos de Telles Junior: “Meu peito é matriz onde canta Zumbi sem toque de sinos, com imagens de Vida!”. Em quantos peitos ainda ressoa a canção de Zumbi dos Palmares, aquele herói enlouquecido de esperança, que sonhava uma nação praticante da unidade racial?
Antes de nos apressarmos em dizer “não sou racista”, convém um breve checklist:
- Quantos dos meus amigos são negros, afrodescendentes?
- Quantos amigos meus filhos e filhas têm que sejam negros?
- O que aprendi com Gandhi, Martin Luther King, Enoch Olinga, Nelson Mandela, Louis Gregory?
- O que sinto ao assistir a filmes como A cor púrpura, 12 anos de escravidão, Selma ou Histórias cruzadas?
- Reconheço Machado de Assis e Lima Barreto como afrodescendentes ou os embranqueci em minha memória cultural?
Responder a essas perguntas é um começo. Se sairmos bem, talvez possamos dizer — com algum convencimento — que não somos racistas.
Mas a verdadeira medida de uma vida superior não está na cor da pele, no sangue ou nos sobrenomes herdados. Está na quantidade de virtudes morais e espirituais que colocamos em ação, na força do caráter que se revela nos pequenos gestos diários, na capacidade de viver sem a ilusão de uma falaciosa superioridade racial.
Porque, no fundo, não se trata apenas de sermos justos com os outros. Trata-se de sermos justos conosco mesmos: libertar nossas próprias sombras para, enfim, vivermos à altura da dignidade humana que afirmamos defender.
Vamos direto ao ponto:
O racismo à brasileira veste a pele da cordialidade, mas carrega séculos de exclusão, humilhação e a persistente negação de nossa própria sombra.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.