Florianópolis e o direito à cidade
"Analistas urbanos lembram que cidades são organismos vivos, plurais, atravessados por fluxos constantes"
A recente declaração do prefeito de Florianópolis, Topázio Neto (PSD), de que pessoas sem emprego ou sem dinheiro não são bem-vindas à capital catarinense provocou forte reação. Segundo o próprio prefeito, sua gestão já teria “devolvido” mais de 500 pessoas que chegaram à cidade sem moradia ou ocupação definidas.
A fala expõe uma perspectiva de cidade como mercadoria — e não como direito. Ao afirmar quem pode ou não existir no território, a gestão elege o sujeito pobre, migrante ou vulnerável como estorvo indesejado. Em vez de políticas sociais, o que se oferece é a expulsão — simbólica e material.
Críticos apontam que a postura do prefeito ignora a própria história do território, ressaltando que a ocupação da região se deu pela tomada de terras que nunca pertenceram aos colonizadores, apagando povos originários e reconfigurando a geografia humana local. Tentar agora legislar sobre quem pode habitar a cidade reproduz, segundo analistas, a lógica de invasão seguida de exclusão: ocupamos, agora impedimos que outros ocupem; vivemos, agora negamos que outros possam viver; sobrevivemos, mas recusamos a sobrevivência alheia.
Em conversa com intelectuais de todos os lugares do Brasil e que se reuniram na feira literária de Alagoas em Maceió, muitos afirmaram que essa retórica higienista revela o que há de mais perverso na gestão pública contemporânea: a negação da cidade como espaço plural e compartilhado. Ao transformar o território em produto selecionável, nega-se a complexidade das vidas que o habitam. A prosperidade sem justiça torna-se privilégio — e não desenvolvimento.
Há ainda um alerta filosófico sobre a ilusão de controle: a morte, maior professora da existência, recorda que nada nos pertence e que estamos aqui de passagem. Ignorar essa impermanência é viver no delírio de que riqueza e poder protegem do fim. Não protegem. Não absolvem. Não preservam.
A consequência desse pensamento se materializa numa cidade cercada por muros — de concreto, de preconceito, de medo. O inferno, ao contrário do imaginado, não está fora: nasce justamente da recusa em reconhecer o outro como legítimo, humano, possível. A história é cíclica — quem hoje expulsa, amanhã pode ser expulso; quem ergue muros, um dia precisará atravessá-los.
Nas redes sociais, a repercussão ganhou também contornos de humor. O humorista Antônio Tabet afirmou que faria de tudo para devolver o prefeito ao seu estado caso ele aparecesse no Rio de Janeiro. Um catarinense respondeu, em tom de brincadeira, que os moradores de Santa Catarina “não aceitam devolução”. A ironia, porém, evidencia o absurdo da própria lógica defendida pelo prefeito.
Analistas urbanos lembram que cidades são organismos vivos, plurais, atravessados por fluxos constantes — demográficos, econômicos, afetivos. Negar esse princípio é negar a própria condição humana. Porque o que define uma cidade não é sua capacidade de excluir, mas de acolher.
Assim, a afirmação do prefeito não apenas fere princípios de dignidade e solidariedade: ela reforça a ideia de que só têm direito à cidade aqueles que já chegam com estabilidade econômica — um contrassenso em um país marcado por desigualdade estrutural e mobilidade interna permanente.
O episódio reacende, portanto, a pergunta essencial: a quem pertence a cidade?
E, sobretudo: quem tem o direito de existir nela?
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
