Entre Auschwitz e Gaza a promessa do "nunca mais" foi quebrada
Auschwitz ergueu museus, livros e memórias. Gaza exibe escombros, fome e deslocamento forçado. O “nunca mais” foi traído diante das câmeras e do silêncio
Em muitas consciências, o Holocausto permanece como paradigma do horror: a “solução final” nazista não apenas assassinou em massa, mas também ergueu o símbolo definitivo de como a indiferença se torna cumplicidade.
Hoje, diante das cenas diárias que chegam de Gaza — bombas, escombros, deslocamentos, fome, mortes —, ressoa uma pergunta incômoda: quando veremos uma safra cinematográfica, séries ou minisséries que retratem o genocídio contra os palestinos com o mesmo peso, rigor e urgência moral que o Holocausto recebeu?
Na manhã de 7 de outubro de 2023, o Hamas lançou uma ofensiva massiva contra Israel. Foram foguetes disparados em larga escala, incursões por túneis subterrâneos, ataques a kibutzim e o sequestro de civis.
O resultado imediato foi devastador: cerca de 1.139 israelenses mortos e mais de 200 pessoas levadas como reféns. O ataque expôs a vulnerabilidade de Israel e serviu como estopim para uma retaliação de intensidade desmedida, rapidamente convertida em um cerco total contra Gaza, que se tornou palco de bombardeios incessantes, invasões terrestres e bloqueios aéreos, marítimos e terrestres.
O que o mundo passou a testemunhar não foi apenas uma guerra entre Estado e organização armada: foi um cerco contra uma população inteira, confinada em 365 km², com mais de dois milhões de habitantes.
As comparações com o Holocausto, embora delicadas, são inevitáveis quando se fala em genocídio. Na Alemanha nazista e nos territórios ocupados, a perseguição sistemática aos judeus começou com leis raciais e exclusão social, mas culminou na “solução final”: o assassinato industrializado.
Entre 1941 e 1945, a máquina da morte funcionou em escala inédita, exterminando cerca de seis milhões de judeus, de uma população europeia que antes da guerra somava entre nove e dez milhões.
Na própria Alemanha, em 1933, havia aproximadamente 522 mil judeus, muitos dos quais emigraram ainda antes do auge da perseguição. Entre 1942 e 1944, a engrenagem letal atingiu sua velocidade máxima, com Auschwitz, Treblinka e Sobibor transformados em indústrias de morte.
Por muito tempo, esse genocídio foi descrito como um massacre “feito nas trevas”: a propaganda nazista abafava denúncias, a mídia ocidental titubeava e governos optavam por silenciar.
Depois da guerra, esse silêncio se converteu em memória organizada. Museus, literatura, programas escolares, testemunhos em tribunais, monumentos públicos e, acima de tudo, o cinema, tornaram-se instrumentos para que as vítimas não desaparecessem também do relato histórico.
Não foram poucos os filmes que gravaram no imaginário coletivo as marcas do Holocausto.
A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, lançou em 1993 o olhar paradoxal de Oskar Schindler, um industrial simpatizante do regime nazista que, ao final, salva cerca de 1.100 judeus empregando-os em suas fábricas. O filme, estrelado por Liam Neeson, recebeu sete Oscars e consolidou-se como referência universal no ensino da memória.
Em 2002, Roman Polanski apresentou O Pianista, com Adrien Brody no papel do músico Władysław Szpilman, sobrevivente do gueto de Varsóvia. Com três Oscars, o filme uniu música e ruínas, humanidade e brutalidade.
Em 1985, Claude Lanzmann, com Shoah, recusou-se a estetizar o horror: em nove horas de depoimentos, sem imagens de arquivo, construiu um memorial fílmico que hoje é insubstituível.
Já em 1961, Stanley Kramer lançou Julgamento em Nuremberg, dramatizando os julgamentos de juízes nazistas e levantando a questão de até onde a obediência cega pode inocentar um homem.
George Stevens, em 1959, adaptou o Diário de Anne Frank, dando rosto e voz à adolescente cujo relato íntimo se tornou um ícone universal.
E Jonathan Glazer, em 2023, surpreendeu com Zona de Interesse, ao mostrar a banalidade da vida de uma família nazista vivendo ao lado de Auschwitz. Ao optar por focar no cotidiano, sem mostrar diretamente a morte, o filme provocou o desconforto de premiar a indiferença.
Cada uma dessas obras, à sua maneira, ajudou a consolidar a narrativa de que Auschwitz não pode ser esquecido, de que o “nunca mais” deve ser transmitido às gerações.
Em Gaza, porém, a história ainda não encontrou quem lhe empreste imagens de permanência. Desde outubro de 2023, mais de 66 mil palestinos foram mortos, sendo 83% civis, segundo relatórios da ONU e de ONGs internacionais.
Em apenas 25 dias de outubro daquele ano, foram documentadas mais de cinco mil mortes de civis, o que configura uma taxa de extermínio sem paralelo recente.
Ao contrário do Holocausto, que foi escondido nas sombras, o genocídio palestino é transmitido em tempo real: imagens ao vivo, vídeos gravados em celulares, denúncias da ONU, protestos em universidades e parlamentos. Auschwitz precisava de sobreviventes que narrassem depois. Gaza já tem suas câmeras transmitindo agora.
Há outra diferença notável: durante o Holocausto, raríssimos foram os alemães que se levantaram publicamente contra o extermínio, e quando o fizeram foram esmagados pela Gestapo.
Em Israel, desde 2023, milhares de pessoas marcharam em Tel Aviv, Jerusalém e Haifa pedindo o fim da guerra, o retorno dos reféns e a saída de Netanyahu. Houve vozes internas que desafiaram a narrativa oficial, um contraste profundo com o silêncio conivente da Alemanha nazista.
A destruição em Gaza é também destruição de hospitais. Antes de outubro de 2023, a faixa contava com 36 hospitais. Em pouco mais de um ano de bombardeios, 31 foram destruídos ou severamente danificados.
A Organização Mundial da Saúde calcula que 94% da infraestrutura hospitalar foi comprometida, com unidades transformadas em escombros. Médicos relatam partos realizados sem anestesia, amputações sem instrumentos adequados, recém-nascidos mortos em incubadoras desligadas pela falta de eletricidade. Bombardear hospitais significa atacar a última linha de defesa da vida. E ainda assim, a justificativa oficial israelense é repetida: haveria túneis do Hamas sob essas instalações.
Não há provas independentes que sustentem tais acusações. As bombas explodem, os corpos somem e as suspeitas viram certezas pelo simples poder da repetição. Quem poderia comprovar, sob ruínas, a veracidade de tais narrativas?
A retórica de extermínio não é apenas inferida: foi dita com todas as letras. Em novembro de 2023, o ministro do Patrimônio, Amichai Eliyahu, afirmou que uma das opções para resolver Gaza seria “lançar uma bomba nuclear”. Netanyahu, diante da reação internacional, suspendeu-o temporariamente das reuniões de gabinete. Ainda bem. Mas poucos meses depois, em janeiro de 2024, Eliyahu repetiu a mesma ideia.
O uso da bomba atômica como solução verbalizada em público expõe até que ponto a desumanização dos palestinos é legitimada no discurso político. Outros ministros ultranacionalistas chegaram a declarar que não deveria “restar pedra sobre pedra em Gaza”. Palavras que não são apenas retórica: são legitimação de uma política de terra arrasada.
Na esfera diplomática, a linguagem também mudou. Em setembro de 2025, a Comissão Internacional Independente da ONU concluiu que Israel está cometendo genocídio em Gaza, responsabilizando autoridades políticas e militares por assassinato, dano físico e destruição deliberada de condições de vida.
Em abril de 2025, a Autoridade Palestina entregou à ONU a carta Genocide, Displacement and Starvation in Gaza. França, Reino Unido, Alemanha, Irlanda e Espanha, em seus parlamentos e chancelarias, passaram a usar explicitamente a palavra genocídio.
A International Association of Genocide Scholars aprovou resolução em 2025 afirmando o mesmo. Não há mais espaço para eufemismos: a palavra foi dita.
Enquanto isso, a fome foi convertida em arma de guerra. O bloqueio aéreo, marítimo e terrestre impede a chegada de alimentos, remédios, combustível e agasalhos. Caminhões de ajuda são retidos ou bombardeados. Famílias inteiras esperam dias por um saco de farinha. Crianças desidratadas morrem nos braços de mães que caminham quilômetros em busca de água. A fome não é um acidente, mas uma política. Ela mata lentamente, sem o estrondo das bombas, mas com a mesma eficácia.
A fome caminha junto com o deslocamento forçado. Centenas de milhares de palestinos foram expulsos de suas casas, obrigados a marchar sob bombardeios em direção a fronteiras fechadas.
O Egito não abriu suas portas. Nenhum país vizinho aceitou receber os deslocados. Gaza inteira transformou-se em zona de morte. Não existe refúgio, não há abrigo seguro, nenhum local protegido.
O debate público foi contaminado por uma confusão deliberada: acusar de antissemitismo todo aquele que denuncia o massacre palestino. Defender palestinos é defender direitos humanos, não atacar judeus como povo ou religião. Que fique bem claro: antissemitismo é hostilidade contra judeus; crítica a Israel é crítica a um Estado. Colapsar uma coisa na outra é estratégia de silenciamento e serve para deslegitimar vozes que clamam pelo fim do massacre.
E mesmo sob esse cerco narrativo, o cinema palestino insiste em resistir. Em 2024, o documentário No Other Land, dirigido por Basel Adra e Hamdan Ballal, com co-direção de Yuval Abraham e Rachel Szor, concorreu ao Oscar. O filme retrata comunidades expulsas na Cisjordânia. Seus diretores enfrentaram censura, ameaças e intimidações após a nomeação, mas conseguiram furar o bloqueio simbólico e mostrar que a câmera pode ser arma de resistência.
Enquanto isso, o secretário-geral da ONU, António Guterres, advertia: “não podemos ignorar o fato de que muitos palestinos estão sendo empurrados para uma situação miserável de fome”.
Reiterava: “as regras da guerra não podem ser suspensas”. Pedia “um cessar-fogo imediato, socorro irrestrito e respeito ao direito internacional”. Palavras firmes, mas que ainda soam como súplica em corredores onde o poder é seletivo e surdo.
E assim, a comparação se impõe. O Holocausto foi feito no silêncio e demorou anos para se revelar. Gaza acontece diante dos nossos olhos, em transmissões ao vivo, e já superou em meses recordes de destruição.
O Holocausto gerou museus, literatura e uma indústria cultural de memória que moldou o discurso de direitos humanos no Ocidente. Gaza, até agora, gera apenas ruínas, transmissões ao vivo e relatórios internacionais.
Auschwitz precisou ser revelado; Gaza não precisa de revelação, precisa de coragem narrativa.
A pergunta insiste: quando veremos nas telas as histórias palestinas com a mesma força com que vimos as histórias judaicas do século XX?
Quando roteiristas e diretores ousarão transformar as imagens fragmentadas do massacre em narrativas humanas de resistência e dor? Quando o cinema dirá em voz alta o que o mundo já sabe em silêncio?
O mundo ainda deve esse “nunca mais” a Gaza.
E cada dia de silêncio é um dia de cumplicidade.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.