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Ronaldo Lima Lins

Escritor e professor emérito da Faculdade de Letras da UFRJ

285 artigos

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Elogio à contradição

Um novo espectro surge no cenário dos EUA, para que ponham as barbas de molho. Os insensíveis que se cuidem

Zohran Mamdani (Foto: Reuters/Jeenah Moon)

Uma das maiores contribuições de Marx para a compreensão dos fatos da vida moderna, acelerada como é, diz respeito à dialética. O mundo se habituara por séculos a trabalhar com a lógica predicativa aristotélica, boa, de fato, para decifrar pequenos desafios e movimentos. No capítulo da historiografia, complexo como se define, não. Aqui entram fatores intrigantes, saltos, viradas abruptas que, como observou Sartre, em A crítica da razão dialética, somente com mecanismos novos e largos, muito largos, chegamos perto de os diagnosticar. Desde então, passamos a discernir, com acuidade, o que antes se entregava à religião ou aos mistérios da natureza.  

Difícil, na verdade, era admitir que uma coisa, um quadro da realidade, um fenômeno na esfera dos costumes, ao mesmo tempo se apresentasse uno e absoluto, segundo as aparências, e, por outro lado, o seu inverso. Contradições não soavam como exequíveis do ponto de vista de uma análise ajustada de acordo com os critérios da razão. Foi preciso uma Revolução social de imensa magnitude, como a de 1789, para, acima da perplexidade geral, quebrar a espinha dos velhos hábitos e admitir que os eventos escondem premissas às vezes exóticas, outras bizarras, no caminho do seu percurso. Desta forma, alargando os limites do pensamento e o virando de cabeça para baixo, viemos a alcançar vários dos estranhos processos da política e seus desdobramentos. A eleição de Zohran Mamdoni, um muçulmano nascido fora dos Estados Unidos, na África, para Prefeito de Nova York, já se revelava, em si, inacreditável. Somava-se a isso a coloração de socialista que o candidato não escondia, ostentando-a despudoradamente. Velhos capitalistas, defensores do “cada um por si”, como Donald Trump, se escandalizaram. 

Este anunciou represálias que impedissem previamente a vitória do rapaz. Não deu certo. Agora, consumado o resultado das urnas, o primeiro mandatário promete medidas mais duras, de ordem econômica, de maneira a atingir o “estrangeiro” e, além dele, a população novaiorquina. Alguém no país enxergara as anomalias da riqueza conjugada à pobreza, escorrendo pelas calçadas das cidades, um dia, no passado, limpas como bombril. De Trump a Mamdani, abriu-se ama contradição semelhante a crateras que inesperadamente, para contrariedade dos agrônomos, surgem nos campos tomados pela erosão.  

Sabe-se que a política constitui território escorregadio em permanente mutação. Só não se imaginava que, uma vez ocorrendo, se exibisse de forma tão abrupta. A era das revoluções, a ideologia se apressara em contestar, ganhara as páginas do passado. Não incomodaria aos presentes, invadidos pelos turbilhões da sociedade de consumo, sempre igual e a um só tempo diferente a cada dia. No entanto, um novo espectro surge no cenário dos EUA, para que ponham as barbas de molho. Os insensíveis que se cuidem. Miseráveis, apenas por existir, contestam a hegemonia do capital!

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.