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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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Do Plenário Ulysses Guimarães a um Congresso medíocre: memória, debates e vergonhas

O voto, tão defendido por Ulysses nas Diretas Já, continua sendo o instrumento mais poderoso para resgatar o Parlamento

Congresso Nacional - 16/09/2024 (Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)

O Plenário Ulysses Guimarães do Congresso Nacional é mais do que uma sala monumental em Brasília. Ele simboliza a luta pela democracia brasileira. Batizado em homenagem ao “Senhor Diretas”, o homem que conduziu a Constituinte de 1987–1988 e encarnou a transição do autoritarismo para a liberdade, o espaço carrega uma responsabilidade histórica. A cada sessão ali realizada, paira uma pergunta silenciosa: estamos honrando ou traindo o legado de Ulysses Guimarães?

Quem foi Ulysses Guimarães

Advogado, deputado por São Paulo, líder do MDB nos anos mais duros da ditadura, Ulysses soube dar voz à resistência democrática. Foi a alma das Diretas Já, conduzindo multidões nas ruas, simbolizando a esperança de um povo cansado de tutelas militares. Em 1987, tornou-se presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Sua marca mais célebre está registrada no gesto de erguer, diante do país, a “Constituição Cidadã”, um marco civilizatório que consolidou direitos sociais, ampliou a democracia e garantiu conquistas como o Sistema Único de Saúde.

Mas a trajetória de Ulysses guarda também um mistério que atravessa o tempo. Em 12 de outubro de 1992, o helicóptero em que viajava caiu no mar de Angra dos Reis. O corpo jamais foi encontrado. Essa morte não explicada converteu-se em símbolo: a ausência súbita do líder máximo da democracia tornou-se metáfora da fragilidade da política brasileira. Desde então, seu nome estampa o plenário principal do Congresso, lembrando que a política pode ser lugar de grandeza, mas também de vazio.

As páginas de grandeza

O Plenário Ulysses Guimarães já testemunhou alguns dos capítulos mais nobres da história recente. Ali se travaram os embates da Constituinte, onde se decidiram os rumos dos direitos sociais, a liberdade sindical, o papel do Estado na economia e a própria essência da nova democracia. Cada voto carregava a esperança de um país que renascia.

Poucos anos depois, o plenário voltou a ser palco da história. Em 1992, diante das denúncias de corrupção e sob a pressão dos “caras-pintadas” nas ruas, o Congresso aprovou o impeachment de Fernando Collor. Ali se reafirmou a força da Constituição recém-promulgada e o poder da sociedade civil de influenciar o Parlamento.

Ao longo das décadas seguintes, o plenário também abrigou CPIs rumorosas, votações decisivas para a economia e discursos que ecoaram o compromisso com a cidadania. Por instantes, o espaço parecia à altura do nome que carrega: templo de uma democracia viva, vibrante, capaz de se reinventar.

As vergonhas de hoje

O contraste com o presente é brutal. O que se vê hoje no Plenário Ulysses Guimarães está muito distante da dignidade de seu patrono. A aprovação da chamada PEC da Blindagem”, que dificulta a responsabilização penal de parlamentares, é apenas um exemplo de como o Congresso tem se transformado em corporação em causa própria.

Emendas bilionárias distribuídas sem transparência, discursos vazios, barganhas silenciosas e o fisiologismo elevado a método corroem a legitimidade do Parlamento. O plenário que deveria ser coração da democracia tem se tornado cenário de negociatas.

Houve momentos de vergonha pública que entraram para a memória coletiva como caricaturas da política. Quem esquece a cena deplorável em que deputados se amarraram com correias no plenário para encenar uma defesa grotesca de privilégios? Aquela imagem, amplamente divulgada, não foi apenas um protesto excêntrico: foi a expressão nua da degradação da política, em que a encenação substitui o debate e o espetáculo grotesco substitui a responsabilidade pública.

A afronta à memória e à democracia

Não foi apenas a encenação grotesca que manchou a dignidade do plenário. Ali também se viveu um dos episódios mais vergonhosos da história parlamentar brasileira: quando Jair Bolsonaro, atacou a presidenta Dilma Rousseff com insultos misóginos e, diante do país, exaltou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido oficialmente como torturador. Foi a primeira vez que um deputado usou o microfone do Plenário Ulysses Guimarães para glorificar a tortura, justamente no espaço que simboliza a Constituição que prometeu “erradicar a tortura e outras formas de tratamento desumano”. A cena envergonhou a democracia brasileira e expôs a degradação a que chegamos: transformar a tribuna do Congresso em palco de elogio ao crime.

O ataque de 8 de janeiro

A degradação não se limita aos gestos de autopreservação parlamentar. O ponto mais baixo veio em 8 de janeiro de 2023, quando hordas golpistas de extrema-direita invadiram Brasília e destruíram o coração da democracia. O Plenário Ulysses Guimarães foi vandalizado: cadeiras reviradas, vitrais quebrados, a tribuna transformada em palco de escárnio. Era a tentativa violenta de apagar a memória de Ulysses e da “Constituição Cidadã”, como se a própria democracia pudesse ser rasgada a golpes de ódio.

A reconstrução física do plenário foi rápida, mas a ferida simbólica permanece. Aquele dia mostrou, de forma brutal, o quanto a democracia brasileira ainda é frágil — e o quanto precisa ser defendida cotidianamente, não apenas contra as vergonhas internas do Congresso, mas também contra os ataques externos da extrema-direita que sonha em retroceder à era da tutela autoritária.

A morte simbólica

Revisitar a trajetória de Ulysses Guimarães - quando se completam 33 anos do seu desaparecimento –, obriga a olhar para sua morte enigmática. Se o corpo desapareceu nas águas de Angra, sua memória permanece. Mas corre-se o risco de assistir, hoje, a outra morte: não física, mas moral e simbólica.

Quando o Congresso abdica de seu papel de guardião da democracia e se rende ao fisiologismo e às barganhas, é como se o espírito de Ulysses fosse apagado. O plenário que leva seu nome corre o risco de se tornar uma caricatura, uma sala grandiosa por fora, mas esvaziada por dentro, onde o brilho da Constituição dá lugar à sombra das conveniências.

Essa morte simbólica não precisa ser definitiva. Ela pode ser revertida se o povo brasileiro resgatar, pelo voto e pela pressão social, o verdadeiro sentido da política. Mas o alerta está dado: se nada for feito, o desaparecimento de Ulysses, em 1992, terá sido apenas o prelúdio de um desaparecimento maior — o da própria dignidade do Congresso Nacional.

O voto como herança de Ulysses

Às vésperas de mais uma eleição em 2026, não basta apenas lamentar. O voto, tão defendido por Ulysses nas Diretas Já, continua sendo o instrumento mais poderoso para resgatar o Parlamento. Cabe ao eleitorado decidir se o plenário será símbolo de grandeza ou caricatura de si mesmo.

A morte não explicada de Ulysses deixou um vazio. Mas é nas urnas que podemos preenchê-lo com novos representantes comprometidos com a democracia, a ética e os direitos sociais. Se o plenário tem sido palco de vergonhas, cabe à sociedade oferecer uma resposta: renovar, depurar e reconectar o Congresso com o povo.

E essa renovação precisa refletir o Brasil real. Hoje, a política institucional continua dominada por homens brancos, de classes privilegiadas, que em nada representam a diversidade do país. Mulheres, negros, indígenas, jovens, trabalhadores e trabalhadoras — a maioria da população — ainda ocupam lugar secundário nas casas legislativas. A democracia brasileira só será plena quando o Congresso tiver o rosto e a voz do povo que o sustenta.

Honrar Ulysses, neste momento histórico, significa abrir as portas do Parlamento para uma representação mais justa, plural e verdadeira. Significa impedir que a morte simbólica da política se consolide. E significa, sobretudo, recuperar a fé de que o plenário central da República pode voltar a ser o espaço onde se escreve a história da democracia brasileira — não sua caricatura.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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