Dialética da guerra
A única trincheira possível está na educação que desmascara a barbárie
Terra Redonda - Se a cavalaria moderna é feita de drones e algoritmos, e se os romances de cavalaria foram substituídos por narrativas de ódio viralizadas, a única trincheira possível está na educação que desmascara a barbárie. Não há Dom Quixote sem Sancho Pança, nem revolução sem letramento crítico
1.
Um livro sobre o cineasta “alternativo” também ator brilhante John Cassavetes relata que, num dos seus filmes mais importantes titulado como Faces (Uma mulher sob influência”), os personagens que representam um casal em crise, inesperadamente, saem das extremidades de uma escada fugindo da cena, “um após o outro”.
Com sua movimentação deixam o campo de filmagem “inevitavelmente vazio, enquanto na vida real (na sala de cinema), o espectador hesita em sair da sala como se esperasse a chegada insondável da cavalaria salvadora”.[i] A cavalaria aqui é metáfora do socorro ou da esperança de salvação, numa situação limite, na qual um tipo particular de relação amorosa tem uma dramaticidade que adquire cores universais.
Ítalo Calvino, em Por que ler os clássicos, viu nexos entre a imaginação poética dos romances de cavalaria e a existência mítica dessas obras, tanto como retórica literária quanto nas suas consequências para repensar a história. O autor relata que no primeiro romance ibérico de cavalaria o seu herói, Tirant lo Blanc, recebeu instruções da Ordem que lhe acolhia que, comentadas por Ítalo Calvino, fizeram que este concluísse o seguinte: “desde suas primeiras páginas, o primeiro romance de cavalaria da Espanha parece querer advertir de que todo livro de cavalaria pressupõe um livro de cavalaria precedente, necessário para que o herói se torne cavaleiro” (…), o que obriga a conclusão “que talvez a cavalaria não tenha nunca existido antes dos livros de cavalaria ou até que só existiu nos livros”.[ii]
A partir dessa lição sobre o “progresso” na arte literária, Ítalo Calvino diz que este também pode ser considerado uma “lenda”, que só existe nos livros que o relatam como tal, ou mesmo que ele – o “progresso” – só existiu nos livros que o definiram. O progresso, todavia, existe, como existiu o romance de cavalaria; ora como superposição de obras literárias que contêm fatos cotidianos, ora como doses de um subjetivismo romântico medieval.
Mas este progresso, pelo raciocínio de Ítalo Calvino, também pode ser considerado como momentos de épocas em formação, que chegam aos andares posteriores da arquitetura da história, não necessariamente superiores, em qualidades institucionais ou morais, em comparação com os momentos precedentes da história.
O que marca hoje a nossa época, por exemplo, é a potência das guerras e a sua radicalização total e dispersa, que fará – ora em diante – os critérios que medirão a violência universal e ensejarão as medidas absolutas para os julgamentos negativos da civilização capitalista, na crise total da sua civilidade política. Esta violência universal é também a imagem produzida “a partir da qual criação de identidades entre as pessoas que, por sua vez se tornam grupos e passam a agir coletivamente – ou melhor: diante da identidade de interesses entre seres marcados pelo egoísmo, reunidos em um grupo, dá-se a homogeneização das condutas”.[iii]
2.
As relações entre a cotidianidade e a história tem o testemunho, ainda no século passado, de duas grandes obras literárias, que não se opuseram às grandes narrativas sobre o desenvolvimento do capitalismo industrial, mas mostraram a depressão dos seus bens culturais e materiais, para vincularam a particularidade típica determinada pelas situações de vida, a um estatuto político universal. Agnes Heller (O cotidiano e a história) e Karel Kosik (Dialética do concreto) são gigantes deste acréscimo de qualidade extraordinário na Teoria Crítica (de Max Horkheimer), depois também reclamada por outros autores brilhantes.
Jorge Steiner, em seu livro A ideia de Europa, cita uma conferência de Max Weber no inverno de 1919, sobre o saber e a ciência.[iv] Nos seus cinco axiomas para definir o cotidiano particular da Europa civilizada ele menciona: “no passado o café, a paisagem em escala humana e transitável, com ruas e praças que levam nomes de estadistas, cientistas, artistas e escritores do passado”.
A totalidade composta no romance moderno não se opôs à presença do que é particular, vivido pelos seus personagens, pois lá já estavam em potência as fragmentações de grupos, seitas, partidos, castas, religiões, alternativas ecológicas e comunidades sexuais, que hoje, apenas somadas, fazem os elementos designados como caracteres da “pós-modernidade”.
Dom Quixote talvez seja considerado o primeiro romance moderno, porque despe a história dos seus personagens da burlesca dignidade do cotidiano medieval, então aparentada nos romances de cavalaria e fazem emergir na história o cotidiano de homens e mulheres comuns, que surgem na grande literatura burguesa, depois desenvolvida como realismo crítico de forma luminosa.
Em grandes romancistas como James Joyce e Herman Melville é fácil encontrar esta dignificação do cotidiano dentro da história, em ambos os casos nos limites da humilhação com irresignação. No Contrapartes de James Joyce, no século de maturidade da segunda revolução industrial, o “funcionário” Farrington é chamado pelo chefe Mr. Alleyne, que trava como ele um diálogo: “Farrington!! Que é que isso quer dizer? Por que que sou sempre obrigado a chamar-lhe a atenção? Poderei saber por que motivo o senhor não tirou uma cópia do contrato entre Bodley e Kirwan? Eu bem lhe disse que deveria estar pronto às quatro horas! – Mas Mr. Shelley disse…” (replica Farrington), que é cortado pelo chefe: “Que foi que Mr. Shelley disse?”, berra o chefe”.[v] Farrington sai humilhado para consertar o seu erro e logo após, no fundo do corredor, desvia o seu caminho do dever e sai para beber nos pubs enfumaçados, no fim da tarde de Dublin.
Em Bartleby, o escriturário,[vi] Herman Melville (1819-1891), já narra numa história publicada pela primeira vez em 1853: “– Bartleby – berra o chefe – preciso que você vá até os Correios, está bem?” – (Era uma caminhada de menos de três minutos.) Veja se chegou algo para mim. – Prefiro não ir, diz Bartleby. – Você não vai? – Prefiro não”. É o mantra que se repete durante toda a narrativa genial de Herman Melville, pela qual o indivíduo se afirma, negativamente, perante a prepotência da dominação heterônoma sobre a sua consciência alienada, num mundo que ele não compreende, mas sabe que lhe estranho e hostil.
Hoje, situações análogas acontecem em outro contexto que produz em série indivíduos dispersos. Estes não se coletivizam mais, ideologicamente, em classes ou em grupos sociais com normas orgânicas. Ao contrário, disparam para fora da realidade politizada, para serem indivíduos solitários e assim se comunicarem com outros indivíduos solitários, que deixam – formalmente – a solidão para se integrarem em grupos de rebelião sem causa evidente.
É o que escreve brilhantemente Rubens Casara: “a imagem produzida a partir do imaginário neoliberal leva à criação de identidades entre as pessoas, que, por sua vez formam grupos e passam a agir coletivamente – ou melhor: diante da identidade de interesses entre seres marcados pelo egoísmo, reunidos em um grupo, dá-se a homogeneização das condutas”.[vii]
A opção de um grande escritor moderno, T. S. Eliot, cujo poema mais importante A Terra desolada, aparece logo depois da Segunda Grande Guerra, é integrar-se conscientemente com as “classes superiores”, sem deixar de ser um gênio da literatura. Ele renega, assim, a sua origem nas “classes baixas” e encontra uma identidade coerente, em outra situação histórica, na qual são possíveis definições políticas claras. Propõe Caetano Gallindo: “já T. S. Eliot, naquele momento, continuava prosaicamente bancário, empregado; era o editor de uma revista criada por ele mesmo: um rapaz com problemas pessoais de toda sorte. Ele, que nos anos seguintes viria a se descrever como um classicista em termos literários (!), um monarquista em termos políticos (!!) e um anglicano em termos religiosos (!!!). Ele, americano na Europa, acadêmico tresmalhado, fruto da mais que republicana, revolucionária e protestante Nova Inglaterra…”.[viii]
3.
As grandes questões geopolíticas de hoje, quanto as suas opções políticas, todavia, só podem ser compreendidas objetivamente a partir dos pontos focais dos interesses nacionais, que são designados por decisão soberana e que, necessariamente, se chocam com as decisões dos países mais débeis. Os ciclos de desenvolvimento da modernidade, que até os anos 1960 avançavam como somas de relações aritméticas com negociações entre blocos, foram surpreendidos – no fim dos anos oitenta – por uma justaposição de crescimentos geométricos, em fluxosinformacionaisamparados por novas formas técnicas de comunicação e novíssimas tecnologias de destruição, em crescimento vertiginoso.
O ponto de partida metodológico para a crítica da barbárie atual, portanto, para prospectarmos um novo tipo de crise do progresso, não pode esperar a sua normal absorção pelo “pulmão do sistema”, pois é provável que estejamos num definhamento respiratório. E este transformou a socialdemocracia – último exemplo da civilidade capitalista – apenas “em um ajuntamento demográfico através do qual se subestima, (…) o papel da dominância global por trás da encruzilhada da luta pelo desenvolvimento (como progresso social) em nosso tempo”.[ix]
A elite dos romances de cavalaria é o próprio cavaleiro andante, épico ou irônico (como Dom Quixote), embora na geopolítica global essa elite se refugie nas medidas definidas pela Carta das Nações Unidas, pela qual os países hegemônicos criariam sua própria “cavalaria”. Esta apareceu como “direito público universal”, que organizou o capitalismo do século passado, deu ordem à apropriação dos recursos naturais e humanos, através de ações bélicas e jurídicas que se “transformaram em mais investimentos, mais empregos, mais lucros, mais capital e mais impostos, para assegurar políticas públicas. Era um sistema injusto, mas produtivo”,[x] cujos momentos cíclicos iniciaram a partir da Primeira Guerra Mundial.
A atual configuração do progresso, todavia, permitiu que o “capitalismo e o capital mudassem sua estrutura orgânica a partir do final da Segunda Guerra. Em 1967 Guy Debord, no seu clássico A sociedade do espetáculo já apontava: “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”, (…) pois não há, portanto, uma descontinuidade entre a tirania da mercadoria sobre o sujeito e a tirania da imagem (…), ao contrário: a imagem é o prolongamento exponenciado do predomínio da mercadoria sobre a vida social”,[xi] ora garantido pelas armas, ora pelo controle da subjetividade pública manipulada pelo mercado.
Manuel Castells, numa conferência em Lisboa (05.12.15), disse estarmos na “época em que as informações e diálogos, lutas e acordos em rede, tornaram envelhecidos os mecanismos tradicionais de disputa política da democracia moderna”.[xii]
Esta se tornou uma perversa difusão de delitos miscigenados com manifestações legítimas de opinião, dentro de uma nova ordem, em que uma “cavalaria” – real e virtual – promove a barbárie, cujo suporte é a inteligência tecnocrática erguida à condição de ciência e apropriada pelos estados nacionais que dominam uma nova “ordem”. O genocídio do povo palestino é uma cruel demonstração da eficácia desta nova “cavalaria”, que não traz mais esperanças e só difunde a morte e o medo.
4.
Para uma mudança estrutural na formação de uma cidadania ativa, neste novo contexto, é preciso um sistema educacional renovado que revise e enfrente dois desafios: alfabetizar numa nova linguagem e letrar com novas tecnologias, que são necessidades oriundas do fato de que a linguagemde hoje não é mais a mesma.[xiii] Os processos comunicativos de interação social mudaram e as mudanças, no modo de vida da sociedade industrial, envelheceram na anarquia da globalização. A política democrática, mesmo a de caráter emancipatório, será insuficiente para mudar o sentido trágico da história se não estiver lastreada por novos processos e sistemas educacionais.
As formas que vêm moldando as relações entre as novas tecnologias e os processos sociais mudam, em cada final de tempos curtos, e elas se modificam em ritmos diferentes; as novas tecnologias, em ritmos alucinantes, para incidir no mundo da vida; e as incidências sobre os processos sociais e políticos, em ritmos lentos e exasperantes.
Assim, as fontes de legitimidade da democracia liberal estão quase no seu ponto terminal e elas só poderão ser reinventadas com mais democracia, não com menos democracia, ponto nevrálgico, portanto, de uma nova educação, voltada para reinventar tanto o socialismo como o republicanismo democrático.
Neste novo contexto é que cobra atualidade uma outra teoria da escola, para adequar a nova escala de necessidades da socialização da técnica, da ciência e da filosofia do trabalho, ao período atual da modernidade. Penso que se trata, não de multiplicar ou hierarquizar os tipos de escola profissional, mas de criar um “tipo único de escola preparatória (primária-média) que conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando os alunos – durante este meio tempo – como pessoas capazes de pensar, de estudar, de dirigir como técnicos, gestores e políticos, ou (mesmo) de controlar quem dirige(…)”.[xiv]
“Não há nenhuma atividade humana da qual se possa excluir qualquer intervenção intelectual: o Homo Faber (“empregado” – ou não – acresento) não pode jamais ser separado do Homo Sapiens, pois separá-los é reabrir espaços para o fascismo prosperar. Além disso, fora do trabalho, todo homem desenvolve alguma atividade intelectual. Ele é, em outras palavras, um “filósofo”, um artista, um homem com sensibilidade; ele partilha uma concepção do mundo, tem uma linha consciente (mesmo alienada) de conduta moral, e, portanto, pode contribuir para manter ou mudar a concepção do mundo, isto é, para estimular novas formas de pensamento”[xv].
Para fazermos todos os dias na vida comum, conscientemente, novas lutas contra velhas guerras!
*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios). [https://amzn.to/3DfPdhF]
Notas
[i] CALVINO, Ítalo. Porque ler os clássicos; tradutor: MOULIN, Nilson. São Paulo: Editora: Companhia das Letras,2007; p. 62.
[ii] Idem
[iii] CASARA, Rubens. A construção do idiota- o processo de idiossubjetivação, da Vinci, Rio de Janeiro, 2025.
[iv] STEINER, George. La idea de Europa. Lisboa: Gradiva, 2005, p. 64.
[v] JOYCE, James, Contrapartes, editora Rumi, 2015.
[vi] MELVILLE, Herman. Bartleby, o escriturário: uma história de Wall Street; Tradução Cássia Zanon. Porto Alegre :Coleção L&PM Pocket, 2003, p.43.
[vii] CASARA, Rubens. A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação. Rio de Janeiro: Da Vinci Livres, 2004, p.242.
[viii] ELIOT, T. S. Poemas. Organização, tradução e posfácio: Caetano W. Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p.386.
[ix]FIORI, José Luís. A Geopolítica do Sistema Imperial. Observatório das Metrópoles. 20/08/2015.Disponível em:
https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/geopolitica-do-sistema-imperial-jose-luis-fiori
[x] DOWBOR, Ladislau. A sociedade na era digital: um outro modo de produção. dowbor.org; 17 de abril de 2024. Disponível em: https://dowbor.org/wp-content/uploads/2024/04/Sociedade_era_digital.pdf.
[xi] Civilização e barbárie. In: Novaes, Adauto (org.). O Olhar Mutilado. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.232.
[xii] CASTELLS, Manuel. Castells e a decadência democrática que vivemos.28 setembro 2016. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/185-noticias-2016/560563-castells-e-a-decadencia-democratica-que-vivemos.
[xiii] DELGADO, Gabriela Neves. EDUCAÇÃO ORQUESTRA: Memórias de uma Professora Universitária. São Paulo: LTR EDITORA LTDA, 2024, p.57.
[xiv] NOGUEIRA, Marco Aurélio Revista de prensa. Gramsci e a escola unitária. Gramsci e o Brasil, junho de 2001. Disponível em: https://www.gramsci.org/?page=visualizar&id=148.
[xv] MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2005, p.49.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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