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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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Descanse em paz – Nana Caymmi

É uma das maiores vozes brasileiras de todos os tempos. Eu não a condeno, ela marcou minha vida com suas músicas

Nana Caymmi (Foto: Nana Caymmi/Instragram)

Nestes tempos árduos, de lacração e cancelamento, assisti estarrecido à batalha campal com relação a memória de Nana Caymmi. De um lado, bosolóides que não conhecem uma única música dela, tentando se apossar de sua memória, através de uma declaração de Bolsonaro, que é um vampiro do inferno, tudo que toca passa a ter um cheiro nauseabundo de enxofre. De outro lado, uma esquerda canceladora e lacradora, que resolveu colocar Nana no mesmo patamar de Olavo de Carvalho, ou de Elba Ramalho, Regina Duarte ou Cássia Kiss.

Em tempos de julgamentos peremptórios e de consumo rápido e fácil, é difícil sair desta sanha de condenação imediatista e tecer parênteses sobre o suposto “engajamento direitista” de Nana. Nana era uma mulher com 84 anos, com a saúde física e mental muito debilitada, que nas últimas décadas passou por um terrível drama familiar, com um filho dependente químico e acidentado, que sofreu sequelas de um trágico acidente de moto, e do qual passou a cuidar diretamente, enfrentando inclusive uma batalha judicial por assistência pecuniária e de pensão para ele. Era uma mulher no fim da vida, vulnerável, que estava longe de ser uma “militante de ultra-direita”, como tornaram-se as citadas acima.

Aliás, o incrível julgamento sumário de Nana vem a partir de declarações muito estapafúrdias e mal educadas dela contra Gil – ex marido inclusive de Nana – e Chico Buarque, que, inclusive, até por ter relações de amizade e carinho com a família Caymmi, nem respondeu aos impropérios de Nana. Não se viu a mesma agilidade no julgamento condenatório de Nana contra outros artistas, por exemplo, Djavan, que há pouco tempo deu declarações, para ser absolvido dizendo, ter sempre votado em Lula, mas que, logo após a posse de Jair Bolsonaro, saudou seu governo, dizendo que deveríamos ter esperanças e que ele seria um presidente que “cuidaria da questão da segurança”. Ao que eu saiba Djavan não tem um quadro de vulnerabilidade como o de Nana, mas sofreu muito menos ataques e foi absolvido com uma rapidez incrível, talvez porque seja mais polido. Mas, aí é uma questão de moralismo com relação ao trato, e não de atitudes de engajamento, sendo que a de Djavan, naquele momento, seria até mais séria que os impropérios de Nana. E veja, não estou julgando ou pedindo o cancelamento de Djavan, só estou argumentando que tudo deve ser tratado dentro do contexto.

Nana não é uma militante de ultra-direira, nunca o foi. Seu quadro de isolamento – inclusive da realidade – no fim da vida, de uma vida debilitada e vulnerável não a absolve de suas declarações, mas as explica. A fala de Danilo Caymmi dizendo que a irmã tinha opiniões políticas superficiais e de que foi usada, antes de ser interpretada como uma “passada de pano”, deve ser visto como um pedido de desculpas da família e uma explicação para o que aconteceu, tragicamente, no fim da vida dela.

Aliás, este quadro de graves problemas, de misérias familiares e inferno astral, não levou só Nana, no fim da vida a engajar-se em temas ou causas que não lhe eram familiares a vida inteira. Temos exemplos históricos de vultos importantíssimos, que não tiveram suas obras e trajetórias canceladas. Ou deixaremos de ler e celebrar Dostoiévski que, no fim da sua vida tornou-se um czarista fanático e fervoroso e um anti-anarquista, anticomunista e antissocialista fanático?

Nana está entre as 5, 10 ou 20 maiores cantoras de MPB de todos os tempos. Dependendo do gosto ou da crítica, ele pode estar mais acima ou mais abaixo da lista, mas ninguém se o nega que ela marcou a história da MPB e não, não por ser filha de Dorival Caymmi. O que não faltam são filhos de cantores e cantoras, sem talento, que não são ninguém na “fila do pão” na MPB. Seguramente, os bosolóides que a festejam não choram escutando “Resposta ao tempo”, ou “Sentinela” e nunca escutaram “Clube da Esquina 2”:

“Por que se chamavam homens

Também se chamavam sonhos

E sonhos não envelhecem

Em meio a tantos gases lacrimogênios

Ficam calmos calmos calmos…”

Ela que emprestou sua voz límpida, linda e afinada a tantas canções de protesto está longe de ter sua história conectada à direita. Aliás, é muito necessário falar sobre estes julgamentos peremptórios e sobre este “nicho de consumo” de música engajada enlatada.

Só se consegue enxergar a potência e a importância de Nana quando se olha integralmente para a obra dela, e se faz uma crítica estética honesta para o que ela fez. O que não se faz hoje em dia. Compram-se pacotes “fechados” se “artistas engajados” que só são engajados até o limite estreito em que os mercado os deixa falar. E que, assim, ficam isentos de toda crítica, porque toda crítica tem que ser pessoal e à “franquia inteira” e não a obra, em separado ou no seu conjunto.

Guy Debord, em “A sociedade do espetáculo” já alertava para esta “pasteurização” do engajamento, no qual à crítica previamente está calada. Todos tornam-se espectadores pacientes de um produto consumido, mesmo que seja um show gratuito da Lady Gaga. Então, se algúem fizer uma crítica a uma letra pueril que seja dela, torna-se logo um bolsonarista inimigo da causa gay. O que é falso desde o princípio, neste Fla x Flu em que se confunde críticas estéticas com comportamento submisso de gado, seja de adesão, seja de antipatia.

É óbvio que se alguém crítica Lady Gaga ou Anitta, pela pauta comportamental ou com comentários machistas, misóginos ou moralistas, é uma cretino fascistóide de direita. Mas se alguém diz que o ritmo é repetitivo e sem variação e as letras são fáceis e sem profundidade, faz apenas uma crítica no estrito limite da obra de arte, algo que é proibido na indústria cultural e  na sociedade de espetáculo, que vende franquias acabadas, acima do bem e do mal, e que resume toda “crítica” a um malabarismo verbal de apologia ao sucesso. Se faz sucesso vende, se vende, é bom.

A crítica necessária de uma obra ou de um movimento musical qualquer é previamente calada, porque se vendem músicas como se vendem uma lasanha da Perdigão, pré-pronta, que deve ser aquecida, e comida sem ser degustada. Assim, os consumidores das franquias de celebridades da música – inclusive os de “música engajada” – tornam-se fanáticos de uma torcida organizada, e não aprecidadores de uma música, que, inclusive podem ter críticas e aspas sobre qualquer música ou estilo musical.

José Ramos Tinhorão, o mau humorado e ótimo crítico da MPB fazia reservas à bossa-nova, principalmente à primeira geração, sobre a ingenuidade e obviedade das letras e falta de variedade delas. Isto não era condenar o movimento, ou dizer que ninguém devia escutar bossa nova, era descrever o movimento e explicá-lo. E fez também a crítica da música de protesto, mostrando algumas repetições e obviedades, como a estrutura repetitiva de que: “no meio da noite escura deveríamos esperar a celebração do novo sol que iria raiar” era a estrutura prévia de quase toda canção de protesto. Isto não era condenar a música de protesto, era lembrar que, no meio da paixão pelo engajamento, deveríamos ler nas entrelinhas para dizer se uma canção de protesto era boa ou ruim, e não celebrá-la previamente, só porque era uma música contra o sistema.

A verdade é que – fora deste Fla x Flu idiota, da disputa entre bosolóides e esquerdistas que, com raras exceções, conheccem pouco ou quase nada a obra e trajetória de Nana – até o mais acerbo crítico encontra muito mais qualidades que defeitos na voz e nas escolhas de repertório de Nana Caymmi, que pela sua trajetória musical, sempre esteve muito mais inserta no repertório de combate pela cultura popular, identidade cultural e até protesto musical, conectado à esquerda e não à direita. Merecia um encerramento de carrreira e de vida mais feliz, mas foi vítima das próprias dores e contradições. É uma das maiores vozes brasileiras de todos os tempos. Eu não a condeno, ela marcou minha vida com suas músicas. Descanse em paz, Nana Caymmi.

 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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