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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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Da Fábrica do Mundo ao Mercado Interno

Diante de um mundo mais instável e fragmentado, fortalecer o mercado interno tornou-se não apenas uma opção econômica, mas um imperativo de soberania

Bandeira da China. Foto: Reuters

A virada estratégica do modelo chinês de desenvolvimento

A decisão chinesa de colocar a expansão da demanda doméstica no centro de sua estratégia de desenvolvimento não surge do nada nem responde apenas às dificuldades conjunturais recentes. Ela é o resultado de uma evolução histórica do modelo econômico chinês, marcada por sucessos extraordinários, limites estruturais crescentes e transformações profundas no ambiente internacional. O editorial do China Daily (16/12), ao ecoar o artigo de Xi Jinping publicado na Qiushi, ajuda a compreender o modelo atual, mas ele só se revela plenamente quando contrastado com o modelo anterior e com as razões que tornaram inevitável a mudança.

O modelo exportador e investidor que moldou a China contemporânea

Durante cerca de quatro décadas, especialmente entre os anos 1990 e meados da década de 2010, a China seguiu um modelo de crescimento baseado em exportações, investimento pesado e rápida industrialização. Esse modelo apoiou-se em alguns pilares bem definidos: abundância de mão de obra, salários relativamente baixos, forte capacidade estatal de planejamento, investimentos maciços em infraestrutura e uma inserção estratégica nas cadeias globais de valor. 

A adesão à OMC, em 2001, consolidou esse caminho. A China tornou-se a “fábrica do mundo”, acumulando superávits comerciais expressivos, reservas internacionais gigantescas e taxas de crescimento sem precedentes na história econômica moderna.

Esse modelo cumpriu um papel histórico decisivo. Ele permitiu retirar centenas de milhões de pessoas da pobreza, construir uma base industrial completa, urbanizar o país em ritmo acelerado e criar capacidades tecnológicas e produtivas que hoje colocam a China na fronteira de setores como energia renovável, telecomunicações, transporte ferroviário, inteligência artificial e manufatura avançada. No entanto, justamente por seu sucesso, o modelo começou a revelar contradições internas e externas.

Os limites internos do crescimento baseado em exportações

No plano interno, o crescimento excessivamente apoiado em investimento e exportações passou a gerar desequilíbrios estruturais. A participação do consumo das famílias no Produto Interno Bruto (PIB) permaneceu relativamente baixa por muito tempo, enquanto o investimento atingia níveis difíceis de sustentar. Surgiram problemas de sobre capacidade em setores industriais, pressões ambientais severas, desigualdades regionais e sociais, além de um endividamento crescente de governos locais e empresas estatais.

À medida que a renda per capita aumentava, também cresciam as expectativas da população por serviços públicos de melhor qualidade, bem-estar, saúde, educação, lazer e segurança social — demandas que não podiam ser atendidas apenas com mais aço, cimento e exportações.

A crise do setor imobiliário tornou-se talvez a expressão mais visível desses limites. Durante anos, a construção civil e o mercado de imóveis funcionaram como pilares do crescimento, da arrecadação dos governos locais e da formação de riqueza das famílias. O colapso de grandes incorporadoras, como a China Evergrande Group, simbolizou o esgotamento desse ciclo. A correção do setor passou a afetar diretamente a confiança dos consumidores, a renda esperada e a disposição das famílias para gastar. A moradia, tratada por décadas como ativo financeiro, reaparece agora como questão social e econômica central, reforçando a necessidade de um modelo de desenvolvimento menos dependente da especulação e mais orientado para as necessidades reais da população.

Um ambiente internacional cada vez menos favorável

No plano externo, o ambiente que havia favorecido o modelo exportador chinês começou a se deteriorar. A crise financeira global de 2008 já havia sinalizado os limites da dependência da demanda externa. Mais recentemente, a intensificação das tensões geopolíticas, a guerra comercial e tecnológica com os Estados Unidos, o avanço do protecionismo, a fragmentação das cadeias globais de valor e a crescente securitização do comércio tornaram claro que apostar excessivamente no mercado externo aumentava a vulnerabilidade da economia chinesa.

O mundo deixou de ser um espaço previsível e aberto para a expansão contínua das exportações.

A demanda doméstica como estratégia, não como paliativo

É nesse contexto que se insere a virada estratégica para a expansão da demanda doméstica, agora reafirmada por Xi Jinping como uma medida estrutural e de longo prazo, e não como um expediente anticíclico. A lógica do novo modelo é distinta: trata-se de construir um equilíbrio dinâmico entre oferta e demanda, no qual o aumento da renda, do consumo e da qualidade de vida da população alimente a inovação, a modernização produtiva e o crescimento sustentável.

Os dados citados no editorial do China Daily ilustram essa transição em curso. O fato de o consumo final já responder por mais da metade do crescimento econômico em 2025 não é trivial. Ele sinaliza uma mudança qualitativa: a economia passa a ser impulsionada menos por volumes e mais por qualidade, serviços, inovação e valor agregado.

Serviços, inovação e bem-estar no centro do novo ciclo

A ênfase em setores como cuidados com idosos, turismo, educação, cultura, economia digital e consumo verde revela um esforço consciente de alinhar crescimento econômico com transformações demográficas, tecnológicas e ambientais. Outro aspecto central do novo modelo é o papel do Estado como coordenador estratégico, e não apenas como investidor direto.

As iniciativas conjuntas do Ministério do Comércio, do Banco Popular da China e do órgão regulador financeiro mostram como política industrial, política financeira e política de consumo está sendo integradas. Ao direcionar crédito, criar garantias, subsidiar juros e estimular novos modelos de consumo, o Estado busca ativar a demanda interna de forma descentralizada, respeitando as diferenças regionais e evitando soluções uniformes.

O desenvolvimento orientado para as pessoas 

Essa mudança também dialoga com o conceito de “novas forças produtivas de qualidade”, frequentemente mencionado pela liderança chinesa. Diferentemente do antigo modelo, baseado na expansão extensiva da capacidade produtiva, o atual enfatiza capacidades individuais, inovação tecnológica, sustentabilidade ambiental e serviços sofisticados. Investir em pessoas torna-se tão importante quanto investir em ativos físicos, sinalizando uma maturação do projeto de desenvolvimento.

Mercado interno forte e abertura externa não são opostos

Por fim, é crucial destacar que a expansão da demanda doméstica não representa um recuo da China em relação à abertura econômica. Ao contrário, um mercado interno mais robusto torna o país ainda mais atraente para o investimento estrangeiro. A lógica se inverte: não se trata mais de crescer para exportar, mas de crescer para atender um vasto mercado interno que, justamente por isso, se torna um polo de atração global.

Uma adaptação histórica ao novo mundo

Em síntese, a transição do antigo modelo exportador-investidor para um modelo centrado na demanda doméstica reflete não uma ruptura, mas uma adaptação estratégica às novas condições históricas. A China não abandona os ganhos do passado; ela os transforma em base para um novo estágio de desenvolvimento.

Diante de um mundo mais instável e fragmentado, fortalecer o mercado interno tornou-se não apenas uma opção econômica, mas um imperativo de soberania, resiliência e sustentabilidade de longo prazo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.