Cristãos por Israel e o uso seletivo da Bíblia em tempos de guerra
É curioso criticar o Irã por fundamentos religiosos quando o surgimento do Estado de Israel, após o Holocausto, foi igualmente legitimado por narrativas de fé
O confronto entre Israel e Irã costuma ser lido sob a lente da geopolítica: ameaça nuclear, disputas de influência e alianças regionais. Há, porém, outro campo de batalha, o da religião transformada em trincheira. Em nome de promessas sagradas, narrativas são fabricadas, histórias são esquecidas e o outro vira inimigo eterno.
Curiosamente, parte desse embate recebe aplauso de alguns movimentos evangélicos radicais no Ocidente. Muitos pregadores desses grupos abandonam o Novo Testamento como guia ético e recorrem quase somente ao Antigo, oferecendo apoio incondicional a Israel e silenciando diante de qualquer abuso. Mateus 5:44, “Amai os vossos inimigos”, quase nunca aparece quando a discussão envolve bombas e fronteiras.
Israel, hoje liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, apresenta-se como democracia plural e herdeira de uma promessa ancestral. A ideia da Terra Prometida, longe de ser apenas simbólica, pauta decisões concretas. Cresce, em setores nacional-religiosos, a convicção de que o território é inegociável por direito divino. Assim, textos de caráter religioso, cujo estatuto histórico é objeto de debate acadêmico, viram títulos de posse usados para legitimar ocupações e exclusões, inclusive em áreas palestinas. Reconhecer o direito inalienável de Israel à segurança e à autodeterminação — assim como o direito de todos os demais povos da região a viverem livres do medo — não implica endossar qualquer política que se invoque em nome da fé.
O Irã, governado pelo presidente Masoud Pezeshkian e submetido à autoridade suprema do aiatolá Ali Khamenei, é uma República Islâmica com Parlamento e eleições, embora subordinada ao sistema do líder religioso. A teologia xiita molda o poder, mas reduzi-lo a simples teocracia obscurantista ignora sua história de disputas internas e participação popular.
É curioso criticar o Irã por fundamentos religiosos quando o surgimento do Estado de Israel, após o Holocausto, foi igualmente legitimado por narrativas de fé. Criado em 1948 sobre terras já habitadas, o novo Estado apoiou-se na promessa do retorno à “terra dos pais”, ideia que ultrapassa o direito internacional e permanece como herança espiritual vista por seus defensores como inquestionável.
Tanto Israel quanto o Irã mantêm formas estatais modernas, mas projetos nacionais atravessados por fundamentos sagrados. Quando essas narrativas deixam o plano simbólico e passam a ordenar o poder, o dissenso desaparece. Negociar vira traição e o adversário torna-se inimigo absoluto, cuja existência é percebida como ameaça. A fé perde o papel de linguagem de sentido e converte-se em dispositivo de exclusão e violência.
Antes de serem adversários, judeus e persas foram aliados. O Tanakh, conjunto das Escrituras judaicas, não retrata os persas como inimigos. Ao contrário, o rei Ciro da Pérsia permitiu que judeus exilados na Babilônia voltassem a Jerusalém e reconstruíssem o Templo; Isaías 45:1 chama-o de ungido do Senhor, reconhecendo em um governante estrangeiro um instrumento de justiça.
Outra figura central é Ester, judia que viveu na corte persa e evitou o massacre de seu povo. A festa de Purim celebra até hoje esse ato de diplomacia e coragem. A terra que corresponde ao Irã foi, portanto, espaço de refúgio, não de ameaça.
Durante a Segunda Guerra Mundial, milhares de judeus também encontraram abrigo no Irã ao fugir da perseguição nazista. Entre eles estavam os chamados Tehran Children ( “Crianças de Teerã”) cerca de mil crianças e adolescentes poloneses de origem judaica que atravessaram a União Soviética, chegaram à capital iraniana em 1942, receberam cuidados da comunidade local e depois seguiram para a Palestina britânica. O acolhimento não nasceu de afinidade religiosa, mas de solidariedade humana.
Esses episódios fazem parte da memória sagrada e histórica judaica, mas são ignorados por determinados segmentos cristãos, especialmente entre esses movimentos evangélicos radicais, que apoiam Israel sem reservas. O Cristo que pregava amar os inimigos cede lugar a um discurso bélico em nome de promessas territoriais. Que leitura bíblica canoniza a violência e silencia diante da injustiça? Quando a religião serve para blindar Estados e negar a humanidade do outro, deixa de ser fé e transforma-se em ideologia.
Recordar Ciro, Ester e o acolhimento iraniano no Holocausto não é nostalgia; trata-se de uma afirmação ética. Essas memórias mostram que a justiça pode superar fronteiras religiosas, que a solidariedade floresce mesmo em contextos de conflito e que o sagrado, quando não sequestrado pelo ódio, serve à vida. O esquecimento, aqui, não é neutro; é uma escolha política.
Hoje, Israel e Irã permanecem em lados opostos de uma guerra de narrativas e ameaças. Talvez o gesto mais revolucionário, fiel às tradições que ambos dizem honrar, seja lembrar que nem sempre foi assim. A memória pode ser trincheira, mas também ponte. Cabe a nós escolher qual passado carregar. Nenhuma promessa divina, por mais sagrada que seja, autoriza massacres e nenhuma teologia verdadeira se cala diante da violência.
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