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      Jacqueline Muniz

      Antropóloga e cientista política. Professora do bacharelado de Segurança Pública da UFF. Gestora de Segurança Pública

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      Corpos Públicos, Vozes Tuteladas: paradoxos de gênero na cobertura do anuário estatístico 2025 sobre feminicídio e estupro

      Corpos de mulheres seguem como território de posse e tutela masculina: Anuário 2025 expõe feminicídio e estupro como tragédia repetida

      (Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil)

      Um resumo dramático: segundo o Anuário Estatístico 2025 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) houve um total de 1.492 feminicídios consumados e 3.870 feminicídios tentados no país em 2024. Apurou-se que 63,6% das vítimas fatais eram mulheres negras e 70,5% tinham entre 18 e 44 anos. Em 80% das ocorrências, o autor do crime era companheiro ou ex-companheiro da vítima, sendo que 97% das mulheres assassinadas foram mortas por homens e 64,3% dentro de casa. Já os registros de estupro atingiram a marca de 87.545 casos, o maior número da série histórica. Destes, 76,8% das vítimas eram vulneráveis e 87,7% do sexo feminino, com alta concentração entre crianças e adolescentes de 10 a 17 anos. 

      Os números do Anuário 2025 do FBSP anunciaram, de novo, uma crônica (estatística) da tragédia anunciada com cifras alarmantes, mas que não falam por si só e requerem interpretação. Na esteira desta dramaticidade acompanhei o seu lançamento e, por sua vez, as repercussões jornalísticas ao longo da última semana de julho. Como a elaboração do Anuário e seu conteúdo são do meu interesse direto como mulher-pesquisadora e gestora pública, ocupei-me de observar com maior atenção, cerca de 25 matérias televisivas e de portais abertos, em especial da grande mídia, sobre os dados relativos ao feminicídio e ao estupro, entre os dias 24 e 27 de julho.

      Causaram-me estranhamento algumas teses que estruturaram o campo discursivo da cobertura jornalística e que emulam paradoxos que envolvem a produção, circulação e regulação dos sentidos públicos sobre a violência de gênero, doméstica e intrafamiliar. Foi possível identificar contrastes entre os lugares das vozes femininas e masculinas, suas institucionalidades e disputas pela verdade do gênero mediadas pela autoridade jornalística. Notei que o corpo feminino é narrado como território de administração estatal e que o gênero é manobrado em nome de soluções técnico-procedimentais. Organizei minha análise em 6 teses presentes na narrativa midiática que dizem respeito à naturalização da violência, a pedagogia do controle, a moralização biológica do feminino e a exclusão da política de gênero da segurança pública. O texto traz algumas das impressões que tive ao analisar as matérias em sua estrutura repercussiva e que trataram de uma problemática que incide diretamente sobre os nós do feminino e de nossas mulheridades. Estas impressões iniciais, ainda que resultantes de um olhar sistemático, não podem ser generalizadas porque se referem a uma amostragem modesta da cobertura jornalística. Porém, penso que servem como pistas para se compreender o campo discursivo em suas disputas sobre a violência de gênero e que quis compartilhar com vocês neste artigo.


      I. Indignação ritualizada e gerência anestésica da violência de gênero.

      As vozes presentes nas reportagens analisadas — femininas e de matiz masculinista (estatais, institucionais e jornalísticas) — expressam indignação e perplexidade diante da gravidade que se faz representar pela verdade dos números. Contudo, essa indignação parece operar como um corpo sem órgão, uma espécie de consenso pelo vazio, reiterado ano após ano, e cujos ditos emulam uma lógica litúrgica da constatação resignada do “de novo, é sempre assim, é estrutural, e tem que parar”. A indignação ingressa nas falas como uma confirmação da ordem pelo negativo que amortece a ruptura das engrenagens sintetizadas nos padrões estatísticos divulgados. 

      A repetição das cifras elevadas do feminicídio e do estupro é acionada na narrativa midiática como um mantra do destino social trágico, inevitável, e não como uma construção política explícita de uma política de gênero. A ciência dos números trazida às falas como o lugar da autoridade mais verdadeira reverbera como uma anestesia pública resultante de sua própria serventia: testemunho-denúncia cumulativo a cada próxima repercussão jornalística. O dado estatístico, bastante de si, tratado como revelação autossuficiente e autoexplicativa, um fato-opinião consumado, substitui a problemática sociopolítica das relações desiguais e naturalizadas de gênero. Os números são enunciados, salvo exceções, como sentença de imutabilidade aquém do “objeto-feminino” a ser violado e além do sujeito-masculino da palavra noticiada. O saber técnico (estatístico) – tomado como neutro e imparcial - é inscrito como expediente discursivo gerencial de ambição hegemônica. Afirma-se pela exaustão da política e pela sua descrença intencional, por meio daquelas vozes noticiadas que ambicionam exercer governo acima e/ou lado do governante: contabiliza-se o inaceitável mais para administrá-lo do que para transformá-lo. O feminicídio e o estupro aparecem nas reportagens como um problema de gestão de suas ocorrências e não de suas existências rotineiras no cotidiano da nossa violenta vida em comum.

      II. A voz masculina como referência e filtro do discurso público.

      A “voz pública” torna-se masculina, mesmo quando falada por instituições ou pela própria imprensa. Nos materiais audiovisuais apreciados, foi possível observar uma manobra performática dos papeis de gênero. As mulheres especialistas (pesquisadoras e jornalistas) foram situadas em um lugar de fala fundante das reportagens. Mas, elas são inscritas como uma autoridade de um corpo alvo, violável e situado, que se faz inaugural na superfície da linguagem e, por sua vez, no dito que é permitido pela construção narrativa da reportagem. As falas masculinas, por sua vez, são inscritas no subterrâneo da linguagem, organizadas pelos silêncios que pontuam os tons do que e como se diz.

      Enquanto as falas femininas trazem sistemas e práticas, as falas masculinas são administrativas e instrumentais, dissociadas de instituições, causas e agentes. As primeiras, ainda que críticas e propositivas, tem sua autoridade como gênero confinada ao território da denúncia e da queixa. As segundas, autorizativas da própria narrativa sobre o feminicídio e o estupro, sem gênero e sujeito, trazem o repertório político de soluções normativas e procedimentais para problemas tratados como desvios e sanções individuais. Os ditos femininos são narrados como uma questão de raiz e razão coletivas, enquanto os ditos masculinos ecoam como um problema pessoal de um homem particular em situação de desvio e não de um projeto masculino de poder. A mulheridade discursiva distribui pitos. A masculinidade nos programas jornalísticos recepciona a repreensão estabelecendo a norma e oferecendo mais sanção: o problema se reduziria aos limbos policiais e jurídicos na execução da “(lei) Maria da Penha” contra o indivíduo violador. Até se reconhece que a culpa é masculina, mas a responsabilidade “por tudo isso aí” é feminina, das leis do mundo ao mundo da lei. 

      A solução seria criminalizar cada vez mais. Nas narrativas noticiadas é atribuído ao Estado e à mídia o lugar de vozes autorizadas e legítimas para interpretar a violência. Essas instituições espelhadas operam com uma linguagem prescritiva e gerencial, apagando o conflito político e o reconhecimento do gênero como um marcador da diferença desigualada. Pode-se dizer que nas reportagens apreciadas a mídia atua como o canal técnico da razão estatal. A imparcialidade jornalística é usada para sustentar o apagamento das relações de gênero e reforçar a racionalidade normativa das soluções do tipo “basta fazer isso”. As vozes femininas, quando aparecem singularizadas com aspas, são assimiladas como exceções na estrutura narrativa masculinista já estabelecida.

      III. A “cultura do estupro” como categoria esvaziada de autoria e conflito.

        A ideia de "cultura do estupro" foi amplamente mobilizada como chave interpretativa, inclusive por vozes femininas. No entanto, essa categoria é trazida nas reportagens como entidade abstrata, difusa e sem sujeitos concretos. Não há ação, não há pluralidade de valores em divergência e em disputa encarnados em grupos sociais diversos. Há engrenagem funcional sem conflito ou tensão. Há uma concepção estática e homogênea da tradição cultural que serve como álibi para a manutenção da ordem machista das coisas. Tem-se a reiteração de uma tradição que congela o tempo, nega o conflito de valores e práticas, destitui a história e oculta as brechas da mudança. Com isso, esconde-se que toda tradição é inventada e pode ser rompida e recriada, também coercitivamente negociada. 

      Homens raramente são nomeados como agentes responsáveis pela violência que executam, porque na cultura do estupro não cabe autoria consciente, cabe uma suposta aceitação da condição do “ser homem” que teria o privilégio do instinto indomável e do poder de fazer e executar a norma que viola. A explicação culturalista passa a funcionar como uma forma de naturalização: “as coisas têm sido assim de pai para filho”. A categoria “cultura do estupro” opera nos ditos como um significante despolitizado, que reconhece o problema, mas esvazia sua potência de responsabilização: a culpa é da sociedade, no limite da mulher violável que criou o homem assim e basta!

      IV. Biologismo, um dispositivo de hierarquia e tutela.

      A mulher também aparece biologizada nas reportagens apreciadas, sendo sutilmente hierarquizada como um “segundo sexo”, derivado e complementar. Trata-se de um artefato linguístico-político que constrói a subalternidade do corpo feminino como um dado natural nos regimes de autoridade de gênero. A diferença biológica passa a corresponder a diferença de papéis sociais naturalmente desiguais. O truque da linguagem é legitimar a centralidade das masculinidades mesmo quando parece se opor a ela, situando-a, de forma subliminar, como o lugar inaugural do sexo em si. Este se confunde com o “primeiro sexo”, que como tal dispensa ser assim enunciado posto que seria ele quem funda a gramática sexual e que, por conta disso, autoriza ou não a existência e reconhecimento das demais sexualidades. 

      A anatomia do corpo feminino é exaltada como um destino comum dissociado da agente política que luta por sua soberania como sujeito plural equivalente em direitos. Categorias físicas e psicológicas são acionadas para criar uma mulher universalizada -somos todas assim - que evoca uma unidade vitalista emancipada de contexto e despossada de história. As metáforas biológicas permitem validar o dimorfismo como exigência natural transformada em norma e que exclui expressões femininas não-binárias e transgêneras. O risco de vitimização surge como um dado biológico atávico de uma corporalidade feminina provocativa em sua potencialidade reprodutiva que atiça e convida naturalmente às reações pela força das sanções. Sua existência precisaria de contenção corretiva com uma pedagogia disciplinadora que até admite a violência como lição a ser aprendida. A equivalência implícita do gênero a uma noção essencialista de natureza legitima a necessidade de tutela. O corpo feminino é narrado como relacional e de pertencimento comum, aparecendo como território de gestão pública: espaço de controle coletivo, administração familiar e vigilância estatal. 

      O discurso jornalístico repercussivo da (in)segurança devolve o gênero à sua suposta natureza natural: protege-se a carne reprodutora da mulher, não se escuta a voz da alma feminina e de suas mulheridades. A mulher é reportada, mais uma vez, como o único ente que “tem gênero”. E este se reduz a uma função instrumental sexual-reprodutiva, instintiva e insurreta, que requer contínua custódia. A mulher é representada como alguém sob suspeita que “faz gênero”, encontrando-se a um passo de deixar de ser natural, isto é, original e autêntica enquanto subordinada a lógica tradicional, patriarcal e heteronormativa. Há no uso de metáforas biológicas uma pretensão de universalização dos atributos femininos como a sua suposta vocação para o cuidado doméstico, de todos, do social. Mas fazer o próprio gênero traz consigo o desafio de singularização, de disputar o próprio corpo e desejo, fazendo da performance uma autoria que reinventa a norma da identidade de gênero e de orientação sexual. Se a política do cuidado é tarefa das mulheres, a política da sua proteção é missão dos homens. 

      V. O Estado protetor: guardião moral e administrador da propriedade coletiva do corpo feminino

      Com o avanço das lutas feministas e a conquista de direitos que tensionam a ordem patriarcal, a virilidade masculina tem experimentado um deslocamento silencioso: de provedor econômico a protetor moral. Ao perder o monopólio sobre a renda e a autoridade doméstica, o homem se reinstala no campo da proteção — da contenção da ameaça, da defesa do que lhe resta como território: a mulher como posse. A figura do protetor emerge como substituto compensatório do provedor. Nesse arranjo, a mulher continua sendo tratada como patrimônio afetivo e social — coletiva em sua função, privada em sua disponibilidade. O feminicídio, então, acontece de ser reportado e repercutido como a falha do protetor diante de outro homem igualmente investido dessa função: o agressor é apenas o outro homem que violou o que deveria proteger. E, como todo protetor, ele mobiliza uma política da correção, uma lição de dor e mando sobre o corpo da mulher. A violência não rompe a norma, apenas reafirma sua centralidade.

      A disputa simbólica que se insinua, na cobertura jornalística, não é entre homem e mulher, mas entre homens sobre o destino de uma mulher parideira e violável, que permanece interditada como sujeito de si. A cena discursiva do feminicídio e do estupro é, assim, uma conversa travada entre dois polos da mesma masculinidade: o agressor e o defensor da honra, o marido e o policial, o pai e o juiz, o conhecido e o patrão. Fala-se da mulher, mas não se fala com ela. Mais que isso: seu corpo é o campo sobre o qual se define quem tem ou não autoridade para exercer proteção legítima. E proteção não é segurança pública. A proteção, particularizada, desigual e discriminatória, tem a ameaça latente como seu fundamento e a violência como sua moeda de troca.

      Mesmo quando se evoca o discurso dos direitos, a mulher entra na equação mediante protocolos de regulação, vigília e cerco. Aceita-se seu empoderamento desde que se submeta à terapia dos ajustes sociais, à economia da convivência e aos circuitos institucionais que reafirmam a ordem pela via normativa masculinista. A posse de seu corpo ainda não é individual: é uma propriedade moral da sociedade, administrada pelo Estado e disputada por homens.

      O que se observa, na repercussão estatística do feminicídio, é a reencenação do masculino ferido, no verbo e no corpo, porque machucou-se batendo ou deixou um outro bater em seu lugar. O provedor cedeu lugar ao protetor como nostalgia reencarnada e esperança de resgate do monopólio da virilidade. Não se trata mais apenas de sustentar, mas de guardar o que ainda se considera posse — a fêmea vinculada ao homem pela honra, pelo sangue ou pelo desejo. A virilidade se reposiciona na função de contenção: o homem que já não provê, agora protege e para tanto requer a política feminina do cuidado. E quem falha em proteger é confrontado por outro homem, mais forte, mais autorizado, igualmente protetor — o juiz, o policial, o perito. A conversa continua sendo de homem para homem, na linguagem e em seus sujeitos.

      Esse circuito fechado da virilidade move-se como engrenagem: o agressor é o homem que ultrapassou a linha da proteção e se tornou ameaça. O defensor é o homem que impõe limites à ameaça — punindo, tutelando, legislando. Ambos agem sobre o corpo feminino, que permanece coisa comum, propriedade moral da coletividade, administrada conforme os regimes de obediência. A mulher pode até ter a posse de uso de seu corpo — é ela quem habita, sente, escolhe —, mas a propriedade simbólica continua sendo coletiva, enraizada nas normas da sociedade e operacionalizada por autoridades que falam em nome do bem comum, e que continuam a operar sob a lógica do masculino. A mulher administra seu corpo, mas não o possui juridicamente como sujeito pleno. O gênero, quando aparece, vem colonizado por sua ideologia – a ideologia de gênero que corresponde a ideologia do que se reconhece como feminino e feminilizado com ou sem útero. 

      O discurso repercutido sobre o feminicídio e o estupro não rompe essa lógica. Ao contrário, a atualiza. A dinâmica noticiosa “dos números da violência contra a mulher” faz uma demonstração de uma demanda por autoridade por quem tem mando, autoridade para falar: punir quem saiu do lugar, quem desacatou o pacto de proteção, quem reivindicou soberania e tornou-se produtora da violência sofrida. E, mais uma vez, o conflito se resolve entre homens com linguagem de homem: o que mata, o que prende, o que julga, o que comenta na TV. O corpo da mulher é campo de prova e não operador da linguagem que sentencia. Mesmo quando há reconhecimento da violência de gênero, o discurso hegemônico convoca terapias de ajustamento, protocolos de prevenção, cartilhas de convivência. O problema vira falha de operação, erro de sistema, desvio individual. A sociedade não se vê a si mesma com seus dispositivos institucionais: vê uma cultura abstrata, quase um espírito fora do social e, ao mesmo tempo, enxerga apenas homens que erraram o papel de proteger, e mulheres que precisam ser recolocadas com seus testemunhos comoventes sob acolhimento tutelar.

      O feminicídio e o estupro, então, não são tratados como assuntos da política pública de segurança estrito senso, mas como um mau funcionamento particular da engrenagem afetiva, doméstica e familiar. A vítima é função, o agressor é falho, o Estado é reparo. E o gênero, quando aparece, é sempre o da mulher — a que precisa ser protegida, orientada, reparada. E neste sentido, por contiguidade, o gênero vira sinônimo de casal. A atuação estatal proposta se constrói no limite do afeto — quase sempre no tom da reconciliação forçada. É a institucionalização do “vamos conversar” porque vai ser melhor para você e todo mundo. Nas entrevistas as autoridades judiciais e policiais hesitam em nomear o que veem sob a síntese numérica das estatísticas. Faltam palavras e sobram indagações. Faltam rupturas e sobram registros. Não se apresenta um léxico que traduza a lógica da violação para além do gesto de indignação e performance técnica das falhas da sociedade (entenda-se as mulheres incluídas) e do Estado, territórios abstratos que se pode acusar pois neles ninguém habita. Os representantes do Estado diante da câmera e do microfone gesticulam o gênero sem dizê-lo. A “(lei) Maria da Penha” é acionada retoricamente como procedimento sem gramática. A política se reduz ao que pode ser registrado, protocolado, executado. O que sobra da violência entra na planilha. O que escapa da norma deseja-se que seja encaminhada a outros órgãos (saúde, ONG etc.). A dor feminina é noticiada, socializada, escutada, documentada. Mas as relações de poder que a produz seguem silenciadas, sem lugares de fala. A engrenagem gira. E o Estado retorna, depois da próxima pancada — com delegacia, viatura, psicóloga e papelada. Mostra-se nas mídias que fez o que pôde, mas a culpa é colocada na “Maria da Penha”, uma lei que por ser “completa demais” comprometeria a sua execução pelo Estado.

      VI. O feminicídio e estupro como ritual estatístico e afirmação da narrativa masculina: uma conclusão parcial. 

      A esta altura, fica evidente que no campo jornalístico e estatal o feminicídio e o estupro não são tratados como parte de política pública de segurança e de sua avaliação, mas como ritual de exposição anual de dados. Os indicadores são acionados como performance de prestação de contas, como renovação simbólica da promessa de enfrentamento. No entanto, a repetição dos números, no indispensável trabalho de divulgação, reforça paradoxalmente uma resignação a ordem, em vez de desestabilizá-la. Deixa-se entrever que se “prestou um serviço público”: “fizemos a nossa parte divulgando para conscientizar a sociedade” e para-se aí.

      A estatística parece operar na cobertura jornalística como mais um recurso de neutralização: transforma o inaceitável em tolerável, o institucional em episódico. A vítima é convertida em categoria técnica. O agressor desaparece. E o Estado fala consigo mesmo, entre seus agentes e seus especialistas. As mulheres são as personagens ausentes visíveis. Aparecem como corpos a proteger e não como sujeitos a escutar. Mesmo quando se reconhece o gênero como marcador, ele surge vinculado à biologia, não à política. O gênero que aparece é sempre o da mulher — vulnerável, afetiva, violável. A masculinidade permanece como norma não nomeada. A narrativa do feminicídio e do estupro se mantém como um discurso entre homens: o que mata, o que prende, o que comenta, o que normatiza diante dos testemunhos femininos com aspas e dores anunciadas nas reportagens. A cena da violência é ocupada por autoridades masculinas que disputam entre si a função de reparo. O corpo feminino é lugar de prova, de intervenção, de ritualização da denúncia solidária. Mas não de enunciação.

      Com isso, a política de segurança é substituída por práticas de contenção, e a justiça por ensinamento moral. Fala-se do feminicídio e estupro como graves desvios, mas não como dispositivos de poder que têm funcionado a serviço de uma ordem masculinista. Esta análise da seleta de reportagens sobre os dados de feminicídio e estupro, consolidados no Anuário 2025 do FBSP, aponta que a produção jornalística e institucional opera em dois registros simultâneos: um de denúncia ritualizada e outro de gestão anestésica da violação. A repetição estatística anual, ingressa na lógica repercussiva normativa-jornalística, transformando o inaceitável em rotina e naturalizando a violência de gênero como uma anomalia contável, sem agentes nem sistemas. A vítima é uma categoria funcional, enquanto o agressor se dissolve no léxico da falha individual ou da cultura. O Estado performa tanto a autoridade quanto a impotência, ao mesmo tempo em que reivindica o monopólio da interpretação, pontuando as vozes femininas como testemunhos e situando a sua participação à indignação consentida.

      Um achado destas impressões iniciais que, cabe reiterar, não autorizam generalizações, é o modo como as narrativas analisadas neutralizam o conflito e dissolvem a politicidade do gênero ao esvaziar as categorias de sujeito, poder e identidade. Ao despolitizar o corpo feminino e particularizar os espaços da violência, o discurso repercussivo pouco favorece a emergência de um projeto ético-político transformador. As soluções oferecidas — técnicas e jurídica-policiais, não tensionam a estrutura, mas a estabilizam. Elas parecem ainda operar como dispositivos de governo que gerenciam a indignação e regulam afetos, mantendo intactas as hierarquias de gênero, raça e classe que sustentam o feminicídio e o estupro como práticas de poder reiteradas.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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