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Michelle Catarine Machado

Jornalista com experiência em comunicação institucional, política, mídias sociais e produção de conteúdos acessíveis e inclusivos

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Convenção da ONU: o tratado que mudou o Brasil

Um marco civilizatório que expôs feridas históricas e abriu caminhos para uma sociedade inclusiva

Lula (Foto: Ricardo Stuckert)

Por Michelle Catarine Machado e Naira Rodrigues Gaspar - Nós vamos iniciar essa conversa escrita falando sobre uma conquista — uma das maiores já alcançadas pelas pessoas com deficiência em nosso país. Uma mudança que transformou tudo a partir de 25 de agosto de 2009, quando o presidente Lula sancionou o Decreto Legislativo nº 186 e ratificou a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência com status constitucional. Foi a primeira vez que um tratado internacional de direitos humanos do século XXI, construído de forma democrática por 192 países, passou a integrar a Constituição brasileira, garantindo o acesso pleno aos direitos e liberdades fundamentais de milhões de brasileiros.

Mas esse avanço não se deu por acaso. Para chegar a esse dia histórico, houve uma longa trajetória de lutas que não diz respeito apenas às pessoas com deficiência. Embora, segundo o IBGE, em 2022 a população com deficiência no Brasil não passasse de 10% do total, sua história de opressão e exclusão remonta às origens da formação do país. A literatura e o jornalismo ajudam a iluminar esse processo. Em Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, vemos a cena da pequena Kehinde, obrigada a fazer malabarismos para provar sua força e destreza diante do senhor que a compraria — revelando como corpos eram avaliados apenas pela utilidade ao trabalho forçado. Já em Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, surgem passagens em que escravizados, ao envelhecer, adoecer ou sofrer mutilações, eram descartados como “peças defeituosas” — uma metáfora contundente da desumanização que sustentou o sistema escravocrata. E em Holocausto Brasileiro, Daniela Arbex denuncia o genocídio silencioso ocorrido no Hospital Colônia, em Barbacena (MG), no século XX, onde mais de 60 mil pessoas — entre pacientes psiquiátricos e indivíduos estigmatizados como “indesejados” — perderam a vida em condições desumanas, vítimas de abandono, negligência e violência institucional.

Assim se constituiu o Brasil: sobre o extermínio dos povos originários, o sequestro e a escravização de milhões de africanos, a exploração das riquezas desta terra para alimentar a Europa e a colonização imposta pelo hemisfério norte. Com as pessoas com deficiência, não foi diferente. O preconceito tem raiz na ideia de incapacidade para o trabalho e, ao longo da história, resultou em exclusão, opressão, segregação e violência contra seus corpos e direitos. Tudo isso mostra que a lógica de descartar vidas consideradas “inúteis” ou “improdutivas” está presente na história do Brasil.

É inegável que as transformações sociais e culturais ocorridas no Brasil após a República e, sobretudo, após os 21 anos de ditadura militar, com a instituição de um Estado democrático de direito e a Constituição de 1988, abriram caminhos para uma transformação também no campo dos direitos das pessoas com deficiência. Por isso, quando chegamos à ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas pelo Brasil, temos a maior conquista desse segmento em nosso país. Principalmente porque a Convenção estabelece na legislação brasileira um marco legal do novo conceito de deficiência, pautado no modelo social dos direitos humanos, em que a deficiência não se limita ao corpo de um sujeito, mas resulta da interação entre impedimentos e barreiras ambientais. Todos os artigos desse importante tratado de direitos humanos do século XXI trazem a equidade e a igualdade de condições como base fundamental para a construção de uma sociedade justa e para a eliminação de todas as formas de opressão.

No artigo 1º, a Convenção afirma que pessoas com deficiência são aquelas com impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial que, em interação com barreiras, têm sua plena participação social obstruída. Isso significa que o impedimento carregado em um corpo não constitui, por si só, a deficiência; é nas barreiras de acessibilidade, comunicação, tecnologias e nas práticas de segregação e exclusão — traduzidas no capacitismo — que ela se configura. Quanto maiores as barreiras e mais profundas as desigualdades, mais graves serão as condições de deficiência dessa população.

Além desse conceito revolucionário, um dos desdobramentos mais importantes da Convenção foi a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), promulgada em 2015 pela presidenta Dilma Rousseff, que, em seu artigo 2º, parágrafo 2º, determina que a avaliação da deficiência, quando necessária, deve ser biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar. Essa avaliação deve considerar: a) impedimentos em funções e estruturas do corpo; b) fatores sociais, ambientais, psicológicos e individuais; e c) limitações no desempenho e restrições de participação social. Com isso, a LBI deu materialidade ao artigo 1º da Convenção e impôs ao Estado brasileiro a responsabilidade de enfrentar desigualdades que atingem, sobretudo, pessoas com deficiência pobres, periféricas, negras e de territórios isolados, em contraste com aquelas que vivem em centros urbanos mais desenvolvidos.

Ao concluir esta conversa, que possamos renovar a esperança em um futuro sem discriminação em razão de deficiência, derrubando barreiras de exclusão e consolidando um convívio em que pessoas com e sem deficiência vivam, lado a lado, em equidade, dignidade e cidadania. Viva 25 de agosto. Viva a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.