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Washington Araújo

Jornalista, escritor e professor. Mestre em Cinema e psicanalista. Pesquisador de IA e redes sociais. Apresenta o podcast 1844, Spotify.

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Construção de Chico eterniza o operário descartável

Enquanto o Brasil não aprender essa lição, Construção será sempre mais que uma canção: será denúncia, espelho, acusação

Chico Buarque (Foto: Taiz Dering/Divulgação)

Ora, o Brasil sempre encontrou na música popular um espelho mais fiel do que qualquer editorial de jornal ou estatística oficial. Se a literatura conta o que somos, a canção revela como nos sentimos. Entre tantas obras-primas da MPB, poucas sobreviveram ao tempo com a mesma força de acusação, a mesma vitalidade estética e a mesma contundência ética quanto Construção, de Chico Buarque de Holanda. Lançada em 1971, quando o país respirava sob a escuridão da ditadura, a música parecia antecipar um Brasil que viria, mas que, para nossa vergonha, ainda não partiu: o Brasil da desigualdade estrutural, do trabalhador descartável, do silêncio imposto às classes invisíveis.

Mais de meio século se passou desde aquele disco que atravessou a censura e os muros do medo. No entanto, cada vez que ouvimos a voz de Chico cantar o operário que “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”, percebemos que a canção não ficou presa ao passado. Ela se atualiza a cada morte banalizada, a cada trabalhador precarizado, a cada família invisível. O verso não é apenas memória: é denúncia viva, documento perene de um país que insiste em girar em falso.

O ciclo que nunca termina

A genialidade de Construção reside tanto no que diz quanto na forma. A estrutura repetitiva dos versos — frases quase idênticas que se transformam por uma palavra final inesperada — cria um efeito hipnótico, circular, claustrofóbico. É como se o trabalhador anônimo fosse condenado a viver e morrer dentro de um ciclo sem saída, em que até sua tragédia se repete. A vida se constrói e se desfaz com a mesma indiferença com que se troca uma peça de máquina.

Esse recurso estético, que a crítica literária poderia chamar de parataxe combinatória, é mais que invenção formal: é metáfora poderosa do trabalho alienado, da vida sacrificada no altar da rotina, da morte sem comoção. Quando o operário despenca do andaime, não é apenas ele que morre: é a sociedade inteira que revela sua incapacidade de proteger os mais frágeis; é a nação que expõe sua indiferença como cicatriz aberta.

Do operário ao entregador

Se em 1971 o personagem era um operário da construção civil, hoje poderia ser facilmente reencarnado em milhares de outros papéis: o entregador de aplicativo que se arrisca entre buzinas e semáforos, o motorista de ônibus exausto, a diarista que cruza a cidade em três conduções. Todos poderiam protagonizar novas estrofes de Construção, e não por analogia poética, mas por cruel literalidade. Ainda hoje, morrem “na contramão atrapalhando o tráfego”, reduzidos a estorvo urbano. Suas mortes não abrem telejornais, não provocam comoções nacionais. São notas de rodapé, registros burocráticos, estatísticas oficiais. A engrenagem continua girando e, a cada giro, mais uma vida é triturada.

A indiferença como política

A permanência de Construção não decorre apenas de sua inventividade formal. Ela persiste porque descreve um traço estrutural da sociedade brasileira: a indiferença diante da vida do pobre. O país sempre naturalizou a precariedade dos que constroem prédios, avenidas, cidades inteiras, mas que não têm direito de habitar o espaço que erguem. A tragédia pessoal se converte em incômodo coletivo: atrapalhar o tráfego, interromper o fluxo, desorganizar a ordem aparente.

É aí que a canção ultrapassa o campo da arte e se instala como documento político. Chico escreveu sob censura, mas conseguiu escapar pelo caminho da poesia. Hoje, quando o autoritarismo volta a rondar, Construção nos lembra que a desigualdade e a indiferença também são formas de violência política. Talvez mais silenciosas, mas não menos letais.

Música como denúncia permanente

Poucas músicas atravessaram décadas sem perder atualidade. Construção é uma delas porque a realidade brasileira pouco mudou para quem vive — e morre — à margem. O Brasil moderno, digitalizado e hiperconectado ainda guarda a mesma lógica do Brasil de 1971: vidas anônimas podem ser descartadas sem que a ordem social se abale.

Nesse sentido, Chico Buarque foi menos um cronista de seu tempo e mais um profeta da permanência. Não profeta religioso, mas político e artístico: alguém que enxerga antes, que percebe na rotina banal o germe da tragédia coletiva. Ao cantar o operário, Chico cantava também o destino de todos nós, aprisionados em uma sociedade que insiste em construir-se sobre a precariedade.

O epitáfio sonoro

O mais perturbador em Construção é que sua denúncia continua ecoando em 2025 com a mesma força. Isso significa que falhamos como sociedade. Significa que os direitos trabalhistas, tão arduamente conquistados, foram desmontados em nome da flexibilização e da competitividade. Significa que a morte continua sendo tratada como estatística e que a dignidade segue sendo privilégio de poucos.

Se a canção pudesse ser resumida em uma imagem, seria esta: um epitáfio sonoro escrito em tempo real. Cada verso, uma pá de cal sobre a memória dos anônimos. Cada repetição, uma lembrança de que a engrenagem da desigualdade continua ativa. Mas também cada acorde, uma convocação para que despertemos do torpor e reconheçamos o óbvio: a dignidade não pode ser privilégio.

Enquanto o Brasil não aprender essa lição, Construção será sempre mais que uma canção: será denúncia, será espelho, será acusação. Será a lembrança incômoda de que a vida continua curta demais para ser pequena — e que, se não nos indignarmos, seremos todos cúmplices de um país que insiste em morrer na contramão da sua própria história.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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