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Marcelo M. Nogueira

Ggraduado em Direito e mestre em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ. Pesquisador em direitos humanos (UFRJ e PUC-RS), foi coordenador executivo da ABJD e atua como colaborador da Comissão de Estudos e Combate ao Lawfare da OAB-RJ)

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Cerco ao Executivo: a hipertrofia do Legislativo e a necessidade de um novo pacto democrático

Diante da fragmentação política e práticas obstrucionistas no Congresso, o Executivo vê-se forçado a recorrer ao STF para exercer funções constitucionais

Lula (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil | Pedro França/Agência Senado)

A recente crise envolvendo o aumento do IOF por decreto presidencial – sustado pelo Congresso e judicializado no STF – transcende um mero embate episódico. Revela a fragilidade estrutural do arranjo político-institucional brasileiro. O governo federal, legitimamente eleito em 2022 com amplo apoio popular e agenda reformista, vê-se sistematicamente constrangido por um Legislativo marcado por fragmentação partidária e dinâmicas que dificultam a negociação republicana.

Essa configuração exige análise desapaixonada. Quando o Executivo é reiteradamente impedido de exercer funções constitucionais por um Congresso que opera predominantemente como órgão de veto – e não como parceiro institucional – instaura-se um desequilíbrio nocivo à democracia e ao Estado social. A recusa ao diálogo estrutural, a obstrução de iniciativas programáticas e a apropriação do orçamento via emendas impositivas configuram um parlamentarismo informal sem responsabilidade de governo. Esse arranjo esvazia a autoridade presidencial e bloqueia avanços necessários.

Desde o início do mandato, o Executivo enfrenta o desafio estrutural de governar sem maioria consolidada. Em 2025, a composição do Congresso Nacional – 513 deputados e 81 senadores, conforme previsto na Constituição – reflete extrema fragmentação partidária. Na Câmara, partidos como PL e Republicanos, após reconfigurações pós-2022, como foi previamente anunciado em tom ameaçador, consolidaram-se como núcleos centrais dos principais blocos de oposição, exercendo influência decisiva. No Senado, a base governista convive com oposição organizada e bancadas centrais voláteis.

Essa assimetria, que poderia ser mitigada por cooperação, é agravada por um modelo disfuncional. Setores do Parlamento operam por veto sistemático, substituindo o diálogo pela obstrução e o interesse público por barganhas localizadas. As emendas impositivas, em especial as de relator, convertem-se em moeda de troca permanente, fragmentando o orçamento e desvirtuando sua função.

Assim, consolida-se uma ruptura silenciosa com o presidencialismo de 1988. O Congresso não apenas veta, mas se exime de construir alternativas. A responsabilidade pela governabilidade é unilateralmente imputada ao Executivo, sem contrapartida programática do Parlamento.

O episódio do IOF expôs o cerne da crise. O decreto presidencial que ajustava a alíquota – amparado por legislação vigente desde 1966 – foi derrubado sem debate substantivo pelo Congresso, que atuou como poder soberano, não deliberativo.

Impedido de aplicar medida básica de política fiscal, o governo recorreu ao STF. A Corte, por sua vez, foi acionada por ambos os lados, convertendo conflito político em disputa constitucional. Para o ministro Gilmar Mendes, o caso é "a ponta do iceberg" de uma crise que exige novo pacto político, não apenas soluções judiciais.

Nesse contexto, a judicialização não é abuso, mas reação necessária. O Executivo, tolhido por dinâmicas obstrucionistas, busca preservar a governança. O que está em jogo transcende o IOF: é o direito constitucional de governar.

A segunda fase da reforma tributária, embora aprovada com derrubada de vetos presidenciais, enfrenta obstáculos complexos em sua regulamentação. Paralelamente, propostas fundamentais como o novo marco fiscal e o plano de reindustrialização encontram resistência sistêmica para avançar no Congresso. Iniciativas relacionadas ao serviço público e projetos de infraestrutura (como o marco das ferrovias) carecem de consenso para tramitação efetiva.

A lógica da governabilidade degenerou-se em barganha orçamentária permanente. Cada voto favorável exige concessões que comprometem a coerência programática. A balcanização partidária e a ausência de compromissos programáticos alimentam essa disfunção.

O resultado é a paralisia decisória do Estado. Governos eleitos não conseguem implementar suas agendas. A legitimidade das urnas é esvaziada por um sistema que prioriza microinteresses sobre objetivos nacionais.

O STF tem sido instado a cumprir função atípica: mediar impasses políticos estruturais. Essa sobrecarga transforma a Corte em árbitro de litígios que deveriam ser resolvidos na arena política.

No caso do IOF, o recurso ao STF não foi fuga da política, mas resposta ao veto permanente. Como assinalou Gilmar Mendes, o Supremo é sistematicamente "provocado" a exercer papel moderador que a política abdicou de realizar.

A crítica à judicialização deve redirecionar-se: não ao Judiciário, mas aos atores políticos que o transformaram em última trincheira funcional. Enquanto persistir a irresponsabilidade legislativa, o Judiciário seguirá sendo refúgio necessário da governabilidade.

Urge repensar a arquitetura institucional. A governabilidade deve ser resgatada não pelo fisiologismo, mas pela reconstrução de compromissos programáticos e responsabilidade republicana.

Revisar o modelo das emendas impositivas, fortalecer a coerência partidária, promover reforma política que incentive lealdade programática e fomentar a corresponsabilidade legislativa são passos essenciais. O Legislativo deve cooperar, não bloquear; dialogar, não obstruir.

O Judiciário pode contribuir mediando diálogos e estimulando soluções estruturais. E, com maturidade, deve-se debater a viabilidade de ajustes institucionais (como elementos de semipresidencialismo). O que é intolerável é a naturalização do veto sistemático e da paralisia como operação padrão.

A democracia exige mais que eleições: exige que os mandatos conferidos pelo voto sejam exercidos em plenitude. Um Executivo impossibilitado de governar por veto obstrucionista representa a negação prática da soberania popular.

A judicialização da política é sintoma – não causa – da hipertrofia legislativa e da erosão da governança. Restaurar o equilíbrio entre Poderes implica reconhecer que governar é direito institucional do eleito, não concessão parlamentar.

Antes que a paralisia se torne irreversível e o presidencialismo se reduza a figura decorativa, é imperativo reconstruir um pacto nacional baseado na democracia funcional, na legitimidade eleitoral e na governabilidade responsável. Não se trata de proteger um governo – mas de preservar a capacidade do Estado brasileiro de cumprir seu destino constitucional.

Urge restabelecer o equilíbrio entre os Poderes antes que a paralisia institucional comprometa a democracia. A democracia é o regime que transforma a vontade popular em política pública. Quando isso é bloqueado, resta apenas a casca do sistema.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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