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Laércio N. Farina

Sócio do escritório L. Farina Advogados, atuante na área da concorrência há mais de três décadas

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Cartel, absolvição e o paradoxo do Estado

A independência entre Justiça e CADE expõe falhas de coerência e ameaça a segurança jurídica dos empresários

Cade (Foto: Reuters)

Empresários brasileiros que enfrentam processos no CADE por formação de cartel muitas vezes convivem com uma situação estranha — e, em certo sentido, desconcertante. Mesmo quando o Judiciário entende que não há provas para levá-los a julgamento, a esfera administrativa pode manter condenações milionárias.

A contradição não é nova, mas voltou a chamar atenção recentemente no julgamento de um pedido de revisão apresentado por uma empresa do setor têxtil que havia sido condenada por participação no cartel dos uniformes escolares. A empresa argumentou que, depois da decisão do CADE, o Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou a denúncia criminal pela fragilidade das provas. Seria, portanto, razoável esperar que a sanção administrativa fosse reavaliada, como a legislação permite.

Não foi o que aconteceu. Por maioria, o CADE entendeu que a decisão judicial não era suficiente para justificar a revisão. Dentre os fundamentos, estava a posição de que as esferas administrativa e penal são independentes — e que o que se decide em uma não interfere, necessariamente, na outra.

Mas aí mora o problema. A independência entre as esferas existe, sim, e tem fundamento jurídico. Mas será que ela pode ser levada a ponto de permitir que o Estado decida, com base na mesma prova, que houve e que não houve infração, sem nenhuma repercussão? Uma esfera diz que os elementos são fortes o suficiente para aplicar multas astronômicas; outra diz que os mesmos elementos são fracos demais sequer para iniciar uma ação penal.

É difícil imaginar que essa dissonância não afete a segurança jurídica dos negócios. Qual empresário sente tranquilidade para participar de uma licitação, negociar com o setor público ou manter política comercial firme quando sabe que pode ter sua condenação mantida em uma frente, mesmo tendo sido absolvido — ou nem denunciado — em outra?

Durante o julgamento, porém, o então presidente do CADE, Alexandre Cordeiro, apresentou voto divergente. Alinhado ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça, citou que a autonomia entre as esferas penal e administrativa deve ceder espaço à coerência entre as decisões sancionatórias. Para ele, a decisão que rejeitou a denúncia por insuficiência de provas foi substancial e configurou fato novo relevante, apto a justificar a revisão da condenação imposta pelo CADE.

A posição é coerente com a tese que temos defendido há anos — em artigos e palestras — sobre os limites da revisão judicial de atos administrativos baseados em discricionariedade técnica. Trata-se de um tema com base teórica consolidada, especialmente na doutrina italiana. O CADE é composto por profissionais especializados em Direito e Economia, cujas decisões — como regra — não devem ter seu mérito técnico revisto pelo Poder Judiciário. No campo concorrencial, atos de concentração e condutas unilaterais, por exemplo, envolvem análise econômica sofisticada, fundada em critérios técnicos e metodologias complexas.

Tome-se como exemplo a análise de um ato de concentração. Quando essa discussão é levada ao Judiciário, o magistrado — por não dispor da mesma formação técnica nem da estrutura colegiada do CADE — recorre à solução do Código de Processo Civil: a nomeação de um perito. Ou seja, substitui-se um tribunal administrativo técnico por uma única opinião. Essa dinâmica quebra a lógica do sistema de especialização e não se harmoniza com o princípio da eficiência administrativa, previsto na Constituição.

O cartel, porém, ocupa posição singular. É a única infração administrativa que também configura crime. A discussão não é puramente econômica — nem mesmo no âmbito do CADE —, mas sobre a força das provas. Assim, quando a Justiça Criminal reconhece, com base nas mesmas alegadas provas, a ausência de elementos probatórios mínimos, a revisão se impõe como medida coerente com valores republicanos, em prestígio à presunção de inocência do acusado.

Hoje, existem empresários que já foram absolvidos pela Justiça Criminal e continuam respondendo a sanções aplicadas pelo CADE por fatos idênticos. Há também quem tenha sido condenado na esfera administrativa antes mesmo de se verificar a robustez da prova no processo penal — e a conta, claro, chegou antes que se pudesse discutir se ela era devida.

Em um país onde as decisões estatais afetam diretamente a reputação, o crédito, a operação e, por vezes, a sobrevivência de empresas, essa dualidade de julgamentos não pode ser tratada como normalidade institucional. A boa notícia é que o voto divergente, a exemplo de outros casos no Judiciário, sinaliza uma abertura positiva para esse debate — que deve ser estimulado. Afinal, o Estado que está punindo é um só.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.