Capitalismo tenta capturar a psicanálise, mas encontra resistência em seu próprio inconsciente
A promessa seduz, mas trai o legado que Freud e Lacan deixaram à humanidade
O capitalismo contemporâneo, que compra subjetividades e vende experiências como se fossem mercadorias de luxo, volta seus olhos para um campo que tenta escapar às lógicas de mercado: a psicanálise como experiência de vida. Em meio ao avanço dos "mercadores da educação", proliferam propostas de cursos rápidos, MBAs e certificações "oficiais" que prometem formar psicanalistas com diploma em mãos. A promessa seduz, mas trai o legado que Freud e Lacan deixaram à humanidade.
A sessão "Formação de psicanalistas", realizada em 18 de setembro de 2025, no Anexo II - Plenário 07, discutiu um tema que volta e meia reaparece: a tentativa de regulamentar a psicanálise como profissão e de criar cursos de graduação reconhecidos pelo MEC. Embora o debate pareça técnico, a pergunta de fundo é política e econômica: quem realmente lucraria com esse enquadramento?
A proposta de transformar a psicanálise em um curso superior formal interessa, em primeiro lugar, aos empresários da educação. Faculdades privadas enxergam aí um nicho promissor: mensalidades, matrículas, material didático e uma clientela atraída pela promessa de um diploma oficial. A regulamentação também favorece grupos que misturam ciência, religião e política, sobretudo líderes religiosos que já exploram a "terapia da alma" e poderiam se apresentar como psicanalistas credenciados, ampliando sua influência.
Para os psicanalistas em formação, entretanto, o ganho é discutível. A tradição freudiana e lacaniana não se baseia em créditos acadêmicos, mas em análise pessoal, estudo teórico e supervisão clínica - um percurso que não pode ser aferido por provas ou carga horária. A regulamentação tende a reduzir essa complexidade a um currículo burocrático, fragilizando a própria essência do ofício.
Graciele Freitas iniciou sua trajetória na psicanálise em 2009, como analisante. Na época, era freira e aspirava tornar-se psicóloga. O percurso analítico, no entanto, transformou profundamente sua vida.
Ela destaca a diferença fundamental entre psicologia e psicanálise: enquanto as psicoterapias se estruturam em técnicas específicas, a psicanálise se ancora no método hipotético-dedutivo, investigando o inconsciente. Recorda as palavras de Freud sobre a importância da análise pessoal para o psicanalista e sobre os limites do ensino da psicanálise nas universidades, sublinhando que a formação nesse campo não se reduz à teoria ou à prática, mas exige a experiência íntima e transformadora da própria análise.
Essa experiência foi decisiva em sua trajetória: permitiu-lhe romper com a vida religiosa e reconhecer sua orientação sexual. Para Graciele, é justamente essa travessia pessoal que habilita o psicanalista a acompanhar os processos de outros sujeitos.
Em outras palavras, a formalização serve mais ao mercado educacional e a projetos de poder do que à preservação da psicanálise. Ao padronizar um saber que lida com o inconsciente e com a singularidade de cada sujeito, o risco é transformar um processo de escuta e autoconhecimento em mais um produto vendável - exatamente o contrário do que Freud concebeu.
Sigmund Freud idealizou um percurso de três pilares - análise pessoal, formação teórica e supervisão clínica - que permanece, até hoje, como o coração do ofício. A análise pessoal é o núcleo mais íntimo: o futuro analista precisa atravessar a própria experiência analítica para reconhecer seus impasses e evitar que seus sintoma se infiltrem no tratamento do outro. É um mergulho prolongado no inconsciente, impossível de ser avaliado em provas ou planilhas de créditos.
O estudo teórico, por sua vez, não se limita a aulas expositivas ou currículos padronizados. Ele ocorre em seminários, leituras e debates que percorrem Freud, Lacan e tantos outros, sempre em diálogo vivo com a prática clínica. A terceira vertente, a supervisão, garante que o analista em formação compartilhe casos e receba orientação de profissionais experientes, num processo artesanal que não cabe em protocolos de ensino superior.
Essa arquitetura singular explica por que a psicanálise resiste à formalização. Lida com subjetividades e com o inconsciente - dimensões que escapam a métricas de desempenho e avaliações objetivas. Seu saber se transmite de analista para analisando, numa experiência que nenhuma grade universitária conseguiria reproduzir.
Ainda assim, o mercado insiste. Plataformas digitais oferecem "formações completas" em poucos meses, vendendo a ilusão de que basta acumular certificados para adentrar o campo. A lógica é conhecida: transformar um processo de maturação psíquica em produto escalável. Mas a psicanálise, que nasceu para escutar "o pior", mantém-se como uma das últimas fronteiras contra a captura homogeneizante - ressalta o psicanalista e doutor em filosofia Rafael Leopoldo.
Ao recusar o diploma oficial, ela reafirma que não é uma técnica para ser comprada, mas um trabalho de escuta e de relação - um ofício que só se aprende vivendo. Talvez seja justamente essa recusa que incomoda tanto os mercadores da educação: a psicanálise lembra, dia após dia, que nem tudo pode virar mercadoria.
Estamos no Ciber…
A psicanálise, que por décadas se sustentou no encontro presencial e na escuta em consultórios discretos, expandiu-se de forma notável no ciberespaço, alcançando uma capilaridade inédita. Plataformas de vídeo, aplicativos de mensagens e redes sociais criaram novas possibilidades de clínica on-line, permitindo que analistas e analisandos se conectem em diferentes fusos, atravessando fronteiras geográficas e culturais. Essa presença digital não se limita à prática terapêutica: grupos de estudo, seminários, transmissões ao vivo e fóruns virtuais multiplicam a circulação de conceitos freudianos e lacanianos, democratizando o acesso ao debate e tornando a psicanálise mais visível em contextos antes restritos. Ao mesmo tempo, esse movimento exige reflexão crítica, pois a velocidade e a lógica de consumo próprias da internet tensionam a temporalidade singular da análise, desafiando o campo a manter sua ética da escuta em meio à aceleração do ciberespaço. Mas isso é uma outra discussão…
A audiência na íntegra: https://www.youtube.com/live/89G6Y7bJWFc?si=WejGLKnYir3sqlgX
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.