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Alexandre Aragão de Albuquerque

Escritor e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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Brasil que dói

Entre dores e canções, Vandré, Ângela Ro Ro e a história recente do Brasil revelam como a música traduz resistências e sentidos de um país que ainda sangra

Brasil que dói (Foto: Bruno Peres/Agência Brasil)

A primeira quinzena de setembro está recheada de significados. No dia 12, celebraram-se os 90 anos de nascimento do compositor e cantor brasileiro, natural do estado da Paraíba, Geraldo Vandré.

Em 1964, Vandré lançou um de seus maiores sucessos, a canção Fica Mal Com Deus: Fica mal com Deus quem não sabe dar / Fica mal comigo quem não sabe amar / Vida que não tem valor / Homem que não sabe dar / Quem quiser comigo ir / Tem que vir do amor / Tem que ter pra dar//.

Dois anos depois, ele chegou à final do Festival da Música Popular Brasileira, da antiga TV Record, com o sucesso da canção Disparada, em parceria com Théo de Barros, sendo uma das preferidas de nossa eterna presidente Gleisi Hoffmann.

A música arrebatou o primeiro lugar ao lado de A Banda, composição de Chico Buarque de Holanda. Diz Vandré nesta maravilhosa cantoria: Aprendi a dizer não / Ver a morte sem chorar / A morte e o destino, tudo / Estava fora de lugar / Eu vivo para concertar (...) / Mas o mundo foi rodando / Nas patas do meu cavalo / E nos sonhos que fui sonhando / As visões se clareando / As visões se clareando / Até que um dia acordei//.

Em 1968, participou do III Festival Internacional da Canção (FIC), da então emissora apoiadora da ditadura militar, TV Globo, com a composição Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores. Esta canção tornou-se o hino da resistência democrática contra o autoritarismo instalado no Brasil em 1964: Vem, vamos embora / Que esperar não é saber / Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer//.

No FIC, Caminhando (como a canção ficou popularmente conhecida) obteve o segundo lugar, perdendo para Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim. Sabiá foi vaiada pelo público presente ao festival, que bradava exigindo o primeiro lugar para a música de Vandré. A ditadura militar censurou a canção, iniciando uma perseguição ao cantor, que, em 1969, após a decretação, em dezembro de 1968, do Ato Institucional Número 5 (AI-5), partiu para o exílio no Chile.

Também é de 1968, e igualmente censurada pela ditadura militar, a belíssima Canção da Despedida, composta em parceria com Geraldo Azevedo: Já vou embora, mas sei que vou voltar / Amor, não chora, se eu volto é pra ficar / Amor, não chora que a hora é de deixar / O amor de agora, pra sempre ele ficar / Eu quis ficar aqui, mas não podia / O meu caminho a ti não conduzia / Um rei mal coroado / Não queria o amor em seu reinado / Pois sabia não ia ser amado / Amor não chora, eu volto um dia / O rei velho e cansado já morria / Perdido em seu reinado sem Maria / Quando eu me despedia, no meu canto lhe dizia / Já vou embora, mas sei que vou voltar / Amor, não chora, que eu volto é pra ficar / Amor, não chora, que a hora é de deixar / O amor de agora, pra sempre ele ficar//.

Mas, nesta primeira quinzena de setembro, no dia 8, outro símbolo da música popular brasileira despediu-se da existência humana: a carioca Ângela Ro Ro, aos 76 anos de idade. Por indicação do cineasta baiano Glauber Rocha, em 1971 participou do álbum Transa, gravado em Londres, na faixa Nostalgia (That’s what rock’n roll is all about). De lá para cá, foram inúmeras e belas canções compostas por Ângela. Gostaríamos de destacar um trecho de uma em particular, Fogueira, lançada em 1984: Deixa eu cantar / Aquela velha história, o amor / Deixa penar / A liberdade também está na dor//.

A centralidade da dor, para o neuropsiquiatra austríaco Viktor Emil Frankl (1905-1997), criador da logoterapia, está intrinsecamente relacionada à busca pelo sentido da vida.

No desenvolvimento de sua escola terapêutica, conhecida como a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia, Logoterapia e Análise Existencial, ele utilizou a própria experiência pessoal como prisioneiro do campo de extermínio em Auschwitz, de 1942 a 1945. Enquanto sofria os horrores cotidianos da maldade nazista, passou a desenvolver dentro de si um bem, algo que lhe trouxesse sentido: ainda que subnutrido e submetido aos trabalhos forçados, manteve vivo o sonho de um dia reencontrar sua companheira.

Para Frankl, não é a dor que nos destrói, mas a ausência de sentido. Ou seja, é preciso retirar do sofrimento uma tarefa única e pessoal. Como afirma Peter Weiss, na peça teatral Marat-Sade: “O importante é se pôr de pé pelos próprios cabelos, virar-se pelo avesso e ver a vida com olhos novos.”

A dor, quando compreendida como componente de uma cosmovisão que contempla tanto um propósito pessoal quanto coletivo, deixa de ser destrutiva, passando a ser uma espécie de força motriz que nos impulsiona a superar o mal visando ao bem desejado.

Ao potencializar nossa liberdade positiva, isto é, aquela capacidade afirmativa de realizarmos o bem, a dor, seja como sofrimento pessoal ou injustiça social, passa a ser um motor propulsor de nossas ações e pensamentos. O sofrimento só é suportável, e mais que isso, torna-se capaz de alimentar nossas energias interiores, quando inserido num contexto de significado. 

Portanto, não se trata de uma busca desenfreada pelo sucesso, pelo primeiro lugar custe o que custar, passando por cima dos outros, como é disseminado freneticamente pela cultura neoliberal. Ao contrário, a felicidade deve acontecer naturalmente como resultado do diálogo íntimo e continuado com nossas consciências e com nossos semelhantes. E quando menos se espera, a felicidade bate à nossa porta. 

Sobreviver é encontrar significados na dor. Cabe a cada um descobri-los. Sem sentido, até as pequenas dores pessoais, como as dores de uma nação, se tornam insuportáveis. 

Na expressão “Brasil que dói”, da ministra Carmem Lúcia, pronunciada em seu voto de condenação da organização criminosa armada chefiada por Bolsonaro, encontra-se um grito que perpassa tempo e espaço pela busca de sentidos diante de tantas atrocidades cometidas pelos donos do poder em nosso país contra o nosso povo, ao longo de nossa história. 

Um dos marcos históricos da total ausência de sentido aparece claramente no voto dado por Jair Bolsonaro, por ocasião do aceite do impeachment, pela Câmara Federal, em 17 de abril de 2016, apoiado pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, bem como por diversos parlamentares da direita política brasileira: “Perderam em 1964. Perderam agora em 2016. Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim”. 

No espaço institucional da democracia, um deputado, eleito pelo voto popular, em sessão oficial, ovaciona o tempo, as instituições e os personagens torturadores que impuseram ao Brasil a mais longa ditadura vivida em sua história recente, sem nenhuma reação da Câmara Federal a tamanha atrocidade.  

Ali, Bolsonaro não apenas resgatava o passado, mas o presentificava com a violência mais uma vez imposta, com a deposição ilegal da presidenta Dilma Rousseff, em nome de 1964. Trata-se de um fato que continua a doer e ecoar firmemente em nosso Brasil, uma vez que não foi um ato isolado de um deputado, porque contou com a conivência de muitos outros, como também com o apoio da própria presidência da Casa Parlamentar. 

Retornando ao cancioneiro popular, na canção Sinhá, composição de Chico Buarque de Holanda e João Bosco, vamos encontrar também um magnífico relato da ausência de sentido nesse Brasil que dói: Pra que me pôr no tronco, pra que me aleijar? / Eu juro a vosmecê que nunca vi Sinhá / Por que me faz tal mal com olhos tão azuis? / Me benzo com o sinal da Santa Cruz/ (...) Por que talhar meu corpo? / Eu não olhei Sinhá / Pra que que vosmecê meus olhos vai furar? / Eu choro em iorubá, mas oro pra Jesus / Pra que que vosmecê me tira a luz? //.  

Ao comentar o livro A Festa da Insignificância (Milan Kundera), o jurista Lênio Streck destaca a importância deste autor na medida em que ele nos obriga a encarar o que fingimos não ver: a insignificância como essência da contemporaneidade. Segundo Streck, Kundera nos mostra que o mundo não perdeu o sentido. Ele perdeu o interesse pelo sentido. E isso é mais grave ainda.

Vive-se num tempo em que o sentido escorre pelas frestas das narrativas. A contemporaneidade contempla o riso diante daquilo que nos causava angústia. O riso não é mais libertação. É sintoma da presença de patologias. Rimos porque não sabemos mais chorar. 

A insignificância deixou de ser exceção e tornou-se regra. O que antes era ruído, tornou-se trilha sonora. A insignificância não é apenas a ausência de sentido, é a celebração da ausência, a falência da comunicação. 

O Direito, como a Literatura e a Política, deveria ser um espaço de sentido. Mas virou palco de performances vazias, conspirações mórbidas. E isto se observa claramente no voto de 12 horas narcísicas do ministro Luiz Fux que, deselegante e arrogantemente, impediu apartes de seus colegas de bancada, ao tempo em que, inexplicavelmente, absolvia, rigorosamente, o líder da organização criminosa armada, Jair Bolsonaro, de todos os crimes que lhe foram imputados. “O deserto cresce, ai de quem abriga desertos”, diria Nietzche. 

No Direito, juízes, como Fux, citam autores sem verificar se podem ser aplicados ao contexto real do julgamento, com decisões que se apoiam em precedentes como se fossem dogmas. A linguagem jurídica tornou-se um idioma fictício, cheio de pompa, mas vazio de sentido. O Direito, que deveria ser espaço de resistência e emancipação, tornou-se palco de performances, festa da insignificância institucional. Juízes devem ser intérpretes comprometidos com o sentido, não com a aparência. É preciso reaprender a ver, e não apenas a olhar como um exercício de rituais vazios. 

Concluímos embalados pelo nosso 11 de setembro de 2025, que nos impele a alimentar os sentidos da luta, pelos caminhos do esperançar concreto e diuturno: Já choramos muito / Muitos se perderam no caminho / Mesmo assim não custa inventar / Uma nova canção / Que venha trazer sol de primavera / Abre as janelas do meu peito / A lição sabemos de cor / Só nos resta aprender //. (Ronaldo Bastos e Beto Guedes) 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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