"America First", cultura por último: uma nação em retirada
Ao contrário da imagem histórica dos EUA como polo de inovação, diversidade e intercâmbio cultural, Trump encarna, e incentiva, um isolamento cultural crescente
A ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos marcou não apenas uma guinada política à direita, mas também um recuo profundo da potência americana no campo simbólico e cultural. Ao contrário da imagem histórica dos EUA como polo de inovação, diversidade e intercâmbio cultural global, Trump encarna - e incentiva - um isolamento cultural crescente, com consequências que vão muito além das fronteiras do país.
O último ato dessa corrida contra a cultura ocorreu no dia 22 último, quando a atual administração norte-americana anunciou que deixará a UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. É uma agência especializada da ONU que trabalha para promover a paz e a segurança internacional através da cooperação em educação, ciência, cultura, comunicação e informação. É a mais importante organização do mundo no gênero.
Entre os motivos oficiais para a retirada:
• Desalinhamento com a política “America First” - A Casa Branca justificou a saída com o argumento de que a UNESCO promove uma agenda social e cultural considerada “divisiva” e “woke”, além de não refletir os interesses nacionais dos EUA.
• Admissão da Palestina como Estado-membro - Um dos pontos de atrito é a incorporação da Palestina na UNESCO, em 2011 - decisão vista como “altamente problemática” pelo governo Trump e que, segundo eles, alimenta um viés anti-Israel dentro da organização.
• Políticas de diversidade por parte da UNESCO - Programas da agência como o “Toolkit antirracista” e iniciativas de gênero como “Transforming MEN’talities” foram apontadas como embasamentos ideológicos conflituosos com os valores defendidos por Washington.
Durante seu primeiro governo, os Estados Unidos se retiraram da UNESCO, alegando “viés anti-Israel” e má gestão (Biden, ao assumir, levou seu país de volta à Organização). Mas tanto nessa primeira saída quanto agora, a decisão de Trump é emblemática: romper com uma das principais instituições internacionais dedicadas à cultura, educação e ciência mostra um desprezo pela construção coletiva do conhecimento e da memória global.
Trump também abandonou acordos multilaterais fundamentais, como o Acordo de Paris para o Clima, cortando pontes com o mundo no exato momento em que o planeta mais precisa de diálogo e colaboração.
E UNESCO e Paris não foram os únicos alvos da cruzada obscurantista de Trump. Durante seu primeiro mandato (2017–2021) e no de agora, ele retirou os Estados Unidos de várias parcerias e acordos de cooperação internacional, sinalizando uma guinada nacionalista e isolacionista: Saída da OMS (Organização Mundial da Saúde), em plena pandemia da Covid-19; saída da TPP-Transpacific, um importante acordo comercial estratégico com 11 países da Ásia e Oceania; saída do Acordo Nuclear com o Irã (JCPOA – Joint Comprehensive Plan of Action); saída do Pacto Global para Migração da ONU; saída do Conselho de Direitos Humanos da ONU; abandono de vários acordos de Cooperação Científica e Ambiental.
O padrão comum a essas decisões foi: Rejeição do multilateralismo; prioridade ao nacionalismo econômico e político; tentativa de reforçar a soberania unilateral americana, mesmo ao custo de desgaste de reputação e influência global.
Chegamos agora à fase exacerbada do “America First”, e a pergunta que as cabeças pensantes nos Estados Unidos fazem com preocupação é: Trata-se de nacionalismo patológico ou de isolamento cultural?
A retórica do “America First” rapidamente se transformou em um cerco identitário. A nação que sempre se alimentou da imigração, da diversidade e da troca cultural tornou-se, sob Trump, um bastião de resistência e ojeriza contra tudo que cheira a pluralismo.
Ao incentivar políticas anti-imigratórias, atacar minorias e promover um discurso de “valores americanos tradicionais” - brancos, cristãos, conservadores - Trump não apenas dividiu a sociedade do seu país, mas empobreceu a identidade nacional, convertendo-a em caricatura.
Trump também promoveu cortes sistemáticos em instituições culturais e científicas, como o National Endowment for the Arts. O investimento em artes e humanidades, historicamente um vetor de prestígio americano no mundo, foi sistematicamente atacado. A cultura passou a ser vista como inimiga.
Além disso, o discurso anti-intelectual e conspiratório disseminado por Trump e seus aliados deslegitimou universidades, cientistas e jornalistas - pilares fundamentais de qualquer sociedade democrática e culturalmente vibrante.
Trump desprezou antigos aliados europeus, asiáticos e latino-americanos, e afastou os Estados Unidos do convívio simbólico e político com outras nações democráticas. Esse desinteresse pela diplomacia cultural não foi apenas uma falha estratégica: foi uma opção ideológica clara, que privilegiou o nacionalismo reativo em detrimento do cosmopolitismo construtivo.
Ao promover uma cultura do medo, do ressentimento e da simplificação, Trump enfraqueceu os EUA como potência cultural, substituindo o prestígio global baseado em ideias, arte e inovação por uma postura defensiva, paranoica e isolada.
A consequência é clara: o soft power americano está em declínio. Os EUA já não inspiram como antes. Ao se isolar culturalmente, perdem sua capacidade de liderar simbolicamente - e talvez, no futuro não distante, também economicamente e politicamente.
Por tudo isso, Trump faz com que seu país corra o risco de tornar-se irrelevante. E o que talvez seja o mais triste e importante, é que Trump não é uma exceção passageira. Ele expressa um movimento profundo dentro da sociedade americana - um desejo de retorno ao passado, a um mito de pureza e grandeza nacional. Mas, ao tentar se proteger do mundo, os EUA arriscam deixar de pertencer a ele. O isolamento cultural de uma potência é sinal claro de decadência e o primeiro passo para sua irrelevância histórica.
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