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Joaquim de Carvalho

Colunista do 247, foi subeditor de Veja e repórter do Jornal Nacional, entre outros veículos. Ganhou os prêmios Esso (equipe, 1992), Vladimir Herzog e Jornalismo Social (revista Imprensa). E-mail: [email protected]

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Abin Paralela, Bolsonaro e a estranha Operação Itapirareca: jornalista foi alvo depois de denunciar esquadrão da morte

Relatório da PF, além de responsabilizar criminosos, serve para entender o período da história em que todos podiam ser alcançados pela ditadura em construção

Jesus Vicente: "Assustador" (Foto: Josué de Lima/Linha 42)

O jornalista José Jesus Vicente é uma das pessoas monitoradas pela Abin Paralela, e esse caso evidencia o risco que o Brasil correria caso Jair Bolsonaro avançasse em seu projeto autoritário.

Vicente, que além de jornalista, é ator e conhecido por suas aventuras, sobretudo por caminhar longas distâncias, com postagens em seu blog.

Trabalha hoje no portal Porque, de Sorocaba, onde também trabalhou como repórter de outras publicações.

O único veículo da grande imprensa em que atuou foi o Diário Popular, rebatizado Diário de S. Paulo, quando foi vendido para o Grupo Globo. Deixou a chamada grande imprensa há mais de dez anos.

No relatório da Polícia Federal, ele é citado duas vezes. A primeira na página 213, com um mapa que mostra três deslocamentos dele, um no bairro em que costuma fazer caminhadas, perto de sua casa.

“Itarareca” é o nome da operação que deu origem a seu monitoramento. “Não entendo por que fui monitorado. Eu não estava fazendo nenhuma reportagem de política naquela época”, disse.

O monitoramento ocorreu nos dias 2 e 3 de setembro de 2020, com cinco consultas feitas pelo terminal de computador 01.

A data coincide com a visita de Jair Bolsonaro à pequena cidade de Tapiraí, no Vale do Ribeira, região paulista onde o ex-presidente viveu e onde ainda mora grande parte da sua família.

Jesus Vicente foi professor da rede pública na cidade, com o qual mantinha vínculos, inclusive por publicar uma revista que mostrava atrações turísticas.

Bolsonaro chegou a falar de Tapiraí em uma live na véspera, chamando-a de Itapiraí, como muitas pessoas costumam dizer, daí, possivelmente, o nome Itapirareca.

Na live, o então chefe do Executivo diz ter telefonado para o destacamento da Polícia Militar e pedido para falar com um policial. Segundo ele, quem atendeu pensou se tratar de trote, e desligou.

Na transmissão em rede social, Bolsonaro pediu que avisassem que era ele mesmo que havia telefonado e, no dia seguinte, desceu de helicóptero no campo de futebol de Tapiraí.

Foi uma visita surpresa, para ele ir ao destacamento e cumprimentar um policial, com quem conversou reservadamente.

Dois meses antes, eu editei no Diário do Centro do Mundo (DCM) uma reportagem do jornalista José Jesus Vicente sobre o desaparecimento de Afonso Domingo da Silva, de 26 anos.

O jovem era negro e o envolvimento da PM na provável execução foi descoberta em razão do capotamento do viatura, na cidade.

A reportagem de Jesus Vicente jogou luzes sobre um suposto esquadrão da morte na região onde a família Bolsonaro é hoje uma das mais prósperas.

Jesus Vicente mencionou, em sua reportagem, o desentendimento que a vítima havia tido com o proprietário de um posto de gasolina de Tapiraí, de onde os policiais saíram para invadir a casa do jovem negro.

“É a única coisa que explica porque eu fui monitorado”, afirmou. Como mostra o relatório da Polícia Federal sobre o inquérito da Abin, o monitoramento da Abin começou um dia antes da visita-surpresa a Tapiraí – no mesmo dia da live, portanto.

Jesus Vicente publicou outra reportagem no Diário do Centro do Mundo, que eu também editei, cerca de quatro meses depois, sobre a denúncia de que o Grupo Votorantim estaria grilando terras na região.

Mas esta não coincide com as mobilizações de Bolsonaro. “Hoje ser citado num relatório sobre a Abin Paralela é um troféu, mas o que aconteceu na época, sem que eu soubesse, é assustador”, comentou.

Ao saber por onde Jesus Vicente andava, a Abin poderia acionar espiões para fazer observação in loco, como ocorreu em outros casos, ou, o que é pior, fornecer endereços para uma ação mais grave.

“Se simulassem um assalto, e me matassem, quem iria associar o crime à reportagem que fiz sobre os PMs?”, afirmou.

Bolsonaro sempre disse que jogava nas quatro linhas da Constituição, que assegura o direito à privacidade.

Uma ação clandestina como esta permite o terror do Estado ou de pessoas associadas a ele. A coincidência de datas nem sua declaração de apreço pela PM de Tapiraí servem como prova contra Bolsonaro.

Mas apresenta indícios. No relatório da Polícia Federal, Bolsonaro é citado como o principal destinatário do produto das ações clandestinas e da instrumentalização da Abin”.

Na página 123, a Polícia Federal relata uma espionagem de cunho absolutamente político.

No dia 10 de junho de 2021, num chat da Abin, o participante com telefone (032) 991463854 (região de Juiz de Fora) relata que houve um encontro de Lula com Fernando Henrique Cardoso, o ex-ministro Nelson Jobim e o empresário Jonas Barcellos, na fazenda deste último, chamada Mata Velha.

“Assunto central: como tirar JB da corrida eleitoral ou criar fatos para invalidar a eleição (robôs, gabinete paralelo, patrocínio de postagens, etc…). Tive informação de pessoa que esteve lá durante um almoço”, escreve. E avisa: “Solicitação do Ch”.

A mensagem é dirigida a Marcelo Bormevet, o agente da PF que organizou o esquema de segurança naquele 6 de setembro de 2018, em Juiz de Fora, e depois, no início do governo, teve o nome apresentado por Carlos Bolsonaro a Gustavo Bebianno para nomeação na Abin.

“Bormevet, achar tudo sobre essa fazenda e esse empresário. Esse é o pedido. Tente tudo sobre o empresário, a fazenda e a relação com os nomes noticiados”, determina.

O pedido é classificado como urgente (“UUU”).

Carlos Bolsonaro é um nome recorrente no inquérito, em que está indiciado. Mas um detalhe tem passado despercebido.

Está no depoimento de Caio César dos Santos Cruz, filho do general Santos Cruz, que foi com Bolsonaro a Juiz de Fora naquele 6 de setembro de 2018.

Caio Santos Cruz foi investigado por representar a empresa israelense Verint System Ltda, que vendeu ao Brasil o software First Mile, usado para quebrar sigilo de celulares sem autorização judicial.

O filho do general entrou na empresa representante da Verint, a Suntech/Cognyte, em 2016, e participou de eventos internacionais em que o First Mile foi apresentado.

No mesmo ano, depois do golpe contra Dilma, Carlos, que era (e é) vereador no Rio de Janeiro, e o irmão Eduardo foram a Israel numa comissão partidária.

Como disse Caio Santos Cruz em seu depoimento à Polícia Federal, chamou a atenção dele o fato de que os dois pediram reunião com agências de segurança de Israel, com o conhecimento da Cognyte, que o reportou para seu representante no Brasil.

“Chamou a atenção do declarante porque não é usual”, registrou a PF no depoimento de Caio Santos Cruz.

Em março de 2019, conforme Santos Cruz, foi a vez de Flávio Bolsonaro, no início de seu mandato como senador, viajar a Israel e participar da reunião em que o First Mile, já adquirido pelo governo brasileiro, teve suas aplicações demonstradas.

“Não é comum a participação de civil nesse tipo de reunião”, disse o filho do general à PF. “Nessa reunião, não estavam presentes representantes do Ministério da Justiça nem da Defesa”, acrescentou.

Qual o interesse dos filhos de Jair Bolsonaro, um deles vereador, no equipamento de inteligência que, agora se sabe, foi usado em larga escala contra determinação legal e para monitoramentos por razões diversas?

A proximidade de Israel com Bolsonaro ficou demonstrada desde o início do governo, quando Benjamin Netanyahu aproveitou a posse para fazer turismo (ou aparentar fazer turismo) no Brasil.

Pelo que indica o relatório, o inquérito da PF sobre a Abin, além de servir para a responsabilização de criminosos, é um documento para entender esse período da história do Brasil, em que ninguém estava seguro, todos podiam ser alvo de uma ditadura em construção.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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