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Alexandre Aragão de Albuquerque

Escritor e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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A repressão intelectual

A censura e o medo moldaram uma geração, e o novo filme de Kleber Mendonça expõe como a ditadura apagou a memória do país

Wagner Moura em 'O Agente Secreto' (Foto: Divulgação)

No ano de 1977, apesar de haver sido iniciada uma chamada abertura “lenta, gradual e segura” por parte da ditadura militar (1964-1985), durante o governo do general Ernesto Geisel, a espionagem e a vigilância nas universidades foram intensificadas. O aparato de informações oficiais, por meio das Assessorias de Segurança e Informação (ASI), continuou ativo, resultando em diversas punições baseadas no Decreto-Lei nº 477, ferramenta fundamental de repressão no meio acadêmico.

Além disso, em 1º de abril de 1977, a ditadura impôs o famigerado “Pacote de Abril”, composto por uma Emenda Constitucional e seis decretos. Para tanto, Geisel fechou temporariamente o Congresso Nacional, utilizando-se do Ato Institucional nº 5, outorgado em 1968 pelo general Costa e Silva.

O objetivo principal do Pacote era dar à ARENA, partido de sustentação da ditadura, o controle efetivo do Poder Legislativo, por meio do aumento das bancadas do Norte e do Nordeste na Câmara dos Deputados e da eleição indireta dos senadores — os chamados senadores biônicos —, a serem escolhidos por um colégio eleitoral constituído por deputados estaduais e por delegados das câmaras municipais. Um dos principais objetivos do Pacote era evitar que o MDB, partido de oposição ao regime, obtivesse maioria no Senado nas eleições de 1978.

Em 1977, auge da repressão intelectual, o Decreto-Lei 477 vigorava com força extrema, sendo aplicado para punir estudantes, professores e funcionários públicos que ousassem questionar o regime ou participar de movimentos considerados “subversivos” pelos usurpadores do poder. O texto do decreto criminalizava a participação em greves estudantis e protestos; a distribuição de literatura e materiais considerados subversivos; a organização de passeatas ou comícios não autorizados pelo regime; e o uso de espaços acadêmicos e escolares para fins políticos ou considerados “imorais”.

Por fim, o Decreto previa um rito sumário, com prazos extremamente curtos para a defesa (48 horas), conduzidos por funcionários designados pelos próprios dirigentes das instituições, eliminando qualquer possibilidade de imparcialidade ou justiça, transformando o ambiente universitário em um espaço de medo, vigilância e punição.

Sensível a esse marco temporal, o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho criou a obra-prima O Agente Secreto (premiado com melhor diretor e melhor ator no Festival de Cinema de Cannes, 2025).

O filme se passa no Brasil de 1977. A maior parte da trama se desenrola em Recife, capital de Pernambuco, para onde o protagonista Marcelo retorna, fugindo do estado de São Paulo em busca de segurança.

Ele é forçado a viver na clandestinidade após sua pesquisa acadêmica sobre o desenvolvimento do carro elétrico haver sido roubada por um empresário brasileiro, de origem italiana, que promove sua difamação, acusando-o de comunista e perseguindo-o até a morte.

A facilidade com que o empresário opera fora da lei, juntamente com a ineficácia das autoridades do Estado em proteger Marcelo, sugere que, numa ditadura, o crime e o poder econômico estão intimamente conectados, e as forças policiais não são uma barreira confiável contra a violência.

Em sua genialidade felliniana, Mendonça, com muita perspicácia e talento, apresenta um cenário político e cultural cuja atmosfera exala um odor de paranoia, vigilância e impunidade que marca exatamente o Brasil de 1977. Dessa forma, o agente secreto do título do filme pode ser qualquer autoridade — ou até mesmo um vizinho. O filme enfatiza não uma ditadura aberta dos quartéis, mas uma ditadura sutil do cotidiano das ruas. O agente secreto pode ser qualquer um, qualquer uma.

Destaca-se a presença da Polícia Civil agindo não como força de segurança pública dos cidadãos, mas como uma estrutura corrupta e cúmplice da atrocidade instalada. A figura da Polícia Civil, no filme, serve como um lembrete visual e tátil de que o Estado ditatorial está sempre por perto, fiscalizando, espionando e forjando mentiras que atendam a seus interesses, em detrimento da defesa da verdade e da cidadania.

Outro aspecto a ser destacado no filme diz respeito ao apagamento da memória. Mendonça frequentemente aborda em suas obras a questão do esquecimento no Brasil (em Bacurau, o centro vital de resistência da comunidade é o museu). Assim, ele convida o público a refletir sobre como a experiência da ditadura militar brasileira, com sua violência de Estado, foi varrida para debaixo do tapete com a Lei da Anistia de 1979.

O desconhecimento e o desinteresse do Dr. Fernando sobre a história de seu pai, no final de O Agente Secreto, não são um mero detalhe, mas uma metáfora central e o ponto culminante da crítica de Kleber Mendonça Filho sobre a amnésia histórica brasileira. Dr. Fernando representa uma geração que foi privada de sua própria memória devido à violência e ao subsequente silêncio e esquecimento institucional no Brasil. Apesar de carregar a aparência do pai, Fernando está vazio de sua história. Ele é uma prova de que o projeto de apagamento da memória passada funcionou.

E, com extrema maestria, Mendonça conclui seu filme com um clássico da Rainha do Rádio, Ângela Maria, entoando “Não Há Mais Tempo”:

Meu bem, não sei Como é que tudo aconteceu Éramos dois E hoje sou somente eu
Não faz sentido Eu ter vivido em teus braços Por toda a vida E agora ter que aprender a ser só
Não há mais tempo Pra novamente recomeçar Gastei a vida Na tentativa de te agradar
Só posso dar A outro amor que encontrar Esta tristeza, esta saudade Estas lembranças do nosso amor

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.