A política da escuta: identidade, fronteiras e o devir contido
A identidade estratégica resiste como ferramenta de luta, mas a escuta seletiva mantém o subalterno fora do centro do poder
Quando Gayatri Spivak perguntou “Pode o subalterno falar?”, não estava em busca de uma resposta simples. O ensaio, publicado em 1988, segue como uma chave crítica para compreender o quanto a voz de quem é colocado à margem — mulheres, povos colonizados, pessoas racializadas, trans ou travestis — é sistematicamente filtrada, traduzida ou mesmo silenciada por quem detém o poder de escuta.
Spivak desarma a confortável ilusão de que basta “dar voz” a alguém. Ela mostra que, nas estruturas coloniais e patriarcais, falar não é o mesmo que ser ouvido. Ao diferenciar Vertretung (falar por) de Darstellung (apresentar), a autora denuncia o risco de representação que transforma a experiência do outro em objeto de estudo, apropriação ou espetáculo. Em seu alvo estão os próprios intelectuais ocidentais — de Foucault a Deleuze — que, mesmo questionando o poder, não escapam da lógica que reduz o subalterno a um conceito.
Essa crítica reverbera nas disputas atuais por identidades políticas. Quando movimentos sociais usam a identidade como estratégia — travestis reivindicando políticas públicas, povos indígenas demarcando territórios, mulheres negras exigindo reparação — não raro enfrentam o mesmo dilema. A “identidade estratégica” é vital para a sobrevivência coletiva, mas encontra limites quando precisa atravessar fronteiras impostas pela colonialidade: é aceita apenas se traduzida na gramática dominante, se encaixada em rótulos palatáveis ao Estado, ao mercado, à academia.
No Brasil, essa tensão é cotidiana. Travestis que lideram espaços de decisão, por exemplo, muitas vezes são celebradas como símbolos de diversidade enquanto suas agendas de redistribuição de poder seguem marginalizadas. É o “devir” que não atravessa fronteiras: pode até performar, mas não se torna hegemônico, não desloca as estruturas que decidem quem tem direito à palavra.
Spivak nos obriga a reconhecer que, quando a escuta é seletiva, o subalterno “não pode falar” no sentido pleno de ser reconhecido. A saída, se existe, não é substituir uma representação por outra, mas criar fissuras no próprio regime de escuta — desestabilizar a língua do poder, disputar a narrativa e, sobretudo, recusar a tradução que domestica.
Assim, a identidade estratégica segue necessária, mas insuficiente. É ferramenta de luta, não destino final. Porque, enquanto as fronteiras do ouvir permanecerem intactas, o devir continuará limitado: um eco que ressoa, mas não atravessa.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.