A pizza era maior
Governo se enreda em acordos orçamentários que fortalecem o fisiologismo do Congresso e podem comprometer a renovação de sua base
1.
No artigo “O axioma de Jucá… outra vez!”, postado no site A Terra é Redonda, abordando as negociações do PL da dosimetria calculei que o que Jucá chamava de “tudo” (“com o supremo, com tudo”) se resumia, neste caso, à ampla maioria de direita e extrema direita do Congresso e o STF. Não me passou pela cabeça que o executivo e os partidos da base fossem chafurdar neste lodaçal antidemocrático.
Mas a pizza, ao que tudo indica, era maior do que eu pensava, tinha mais ingredientes para torná-la mais completa. Nas discussões na CCJ do Senado ficou claro que o governo era parte do acordão. Os senadores críticos à redução das penas de Jair Bolsonaro e da generalada ficaram sem suporte do PT e dos líderes da base governamental.
A sala de reuniões estava repleta de bolsonaristas e outros direitistas e os senadores do PT primaram pela ausência. Renan Calheiros e Otto Alencar se esgoelaram, denunciando o acordo que abria o caminho para Jair Bolsonaro deixar a sua cela da PF com pompas e glórias pela porta da frente, senão para este Natal, certamente para o de 2026.
O que aconteceu? É claro que o PT, o único dos partidos ditos de esquerda com votos no Senado não tinha nem tem interesse em reduzir as penas dos golpistas, seus nove votos foram contra a dosimetria casuística. O mesmo não se pode dizer do PSB, dito de centro esquerda, e que votou em bloco (4 votos) com o golpismo. O outro partido dito de centro esquerda nesta casa (PDT) deu um voto contra a dosimetria e uma ausência. Os outros 14 votos contra a dosimetria vieram de partidos do Centrão com um pé no governo e outro na oposição: PSD (5 não e 6 sim), MDB (7 não e 3 sim), PP (1 não e 5 sim) e Podemos (1 não e 2 sim).E houve um voto de um senador independente, Randolphe Rodrigues, contra a dosimetria.
O que gerou o cheiro de queimado não foi a votação em plenário que teve um resultado mais ou menos dentro do esperado, salvo o voto do PSB. O estranho foi o comportamento dos líderes do governo e do PT na CCJ, abandonando o enfrentamento com os bolsonaristas e fazendo um acordo para votar a dosimetria rapidamente.
O senador Otto Alencar tinha anunciado que iria cumprir as regras do Senado e colocar a proposta em debate por cinco dias. Não apenas isto daria margem a uma polêmica demarcando os campos golpistas e antigolpistas como levaria o voto em plenária para o próximo ano, com mais tempo para a mobilização da sociedade contra a anistia disfarçada.
2.
Desarmar o confronto pela aceitação sem debate do voto de urgência foi uma manobra de esperteza ou de pragmatismo do PT e do governo. O que ganharam em troca? Primeiro, que o voto da LDO fosse realizado em seguida, evitando levá-lo para o próximo ano legislativo como aconteceu em 2024/2025. Ocorre que isto era mais ou menos como arrombar porta aberta porque o Centrão e o bolsonarismo estavam já decididos a votar a LDO com urgência pois tem como prioridade a liberação das emendas tão cedo quanto possível em 2026 para influenciar os votos para o Congresso.
Mais ainda, a direita queria incluir mais gastos nas emendas parlamentares na LDO, como aliás o fêz. O acordo pela urgência na dosimetria era desnecessário. Em segundo lugar, o governo (via PT) negociou o apoio do Centrão ao PL que reduzia as isenções fiscais em 10% e taxava as Bets e Fintecs, liberando 20 bilhões para serem incluidos na LDO.
Quem foi que bolou este acordo absurdo que desarmou a pressão contra a dosimetria? Qual a lógica que o justificou? Ao que ficou claro depois do barulho e protestos contra o acordo foi a decisão (não assumida pelo governo) de aceitar a derrota inevitável sem combate em troca da urgência na LDO, ignorando as manifestações massivas do domingo anterior. Para não ficarem mal na fita decidiram transferir a batalha para um veto do Lula e para uma eventual decisão contrária do STF.
Ocorre que este último já vinha dando mostras de que não ia interferir na decisão do Congresso, mesmo se declarando contrário ao conteúdo. Sobra o veto do Lula que seria ou será derrubado pelo plenário do Senado.
O senador Jacques Wagner cumpriu um triste papel de boi de piranha, justificando o acordão como restrito ao procedimento de urgência e não sobre o conteúdo. O argumento foi apoiado e o acordão justificado nas redes sociais pelos petistas mais ardorosos como um ato de “realismo político” e de “pragmatismo”.
A mídia convencional está afirmando que o pragmatismo tem objetivo estratégico para as eleições do ano que vem. Trata-se de ter mais caixa para gastar em projetos sociais (vale transporte e outros) e arrancar mais uns votos de setores de baixa renda. Pode ser que esta esperteza tenha orientado o governo e o PT, mas acho que a avaliação foi inteiramente errada.
Como dizia o saudoso líder conservador, mas democrático, Tancredo Neves, “quando a esperteza é demasiada ela vira um bicho que devora o esperto”.
O governo ganha os 20 bilhões e acha que pode usar para distribuir benesses no ano que vem e que estas benesses se traduzirão em votos para Lula. Pode até acontecer se Lula não se desgastar neste joguinho oportunista ou “pragmático”. Mas Lula está careca de saber, ou deveria estar, que a eleição para o Congresso é hoje tão ou mais importante do que para a presidência da República. Com os poderes cada vez mais ampliados da Câmara e do Senado os partidos da direita e até o da extrema direita (PL) estão mirando mais em ampliar bancadas do que em eleger um presidente.
3.
Um exemplo claro desta estratégia é a política de Valdemar Costa Neto do PL. Ele parece preferir uma candidatura à presidência de Flávio Bolsonaro, mesmo sabendo que as chances de derrota são maiores do que com um direitista levemente enrustido como Tarcísio de Freitas. O mesmo cálculo é adotado pela esfinge paulista do PSD, Gilberto Kassab.
Todos estes oportunistas têm um fino faro para os melhores investimentos políticos. Eles seguem pressionando o executivo para liberar emendas e mais emendas, até as atrasadas de 2024 (3 bi) e até anteriores (1,9 bi), para lubrificar as máquinas municipais onde a derrama sob controle dos deputados e senadores muitas vezes representa mais dinheiro do que o orçamento dos prefeitos. Em acordo anterior o governo se comprometeu a liberar 26 bilhões de reais em emendas até o mês de junho de 2026.
Desde que tenham acesso à enxurrada de recursos de suas emendas deputados e senadores não veem problemas em negociar a liberação de recursos para o governo federal porque acreditam que a capitalização em votos fica em grande parte restrita aos votos do próprio Lula. Ou seja, o governo quer dinheiro (na LDO) para irrigar a horta do Lula e o Centrão quer dinheiro (emendas) para irrigar as hortas de cada um dos parlamentares hoje eleitos.
Esta troca de favores entre governo e Congresso não tem tido bons resultados para Lula, apesar dos agradecimentos feitos pelo presidente a Hugo Motta e Davi Alcolumbre em discurso recente. A lista de derrotas do governo é longa e chocante, mas o pior é que, salvo algumas (poucas) reações mais pesadas, os deputados da base frequentemente engolem sapos cururus tamanhudos e votam junto com a oposição em acordos “para evitar o pior”, tornando difícil para os eleitores distinguirem entre direita e esquerda, entre governo e oposição. Este esse estado de coisas não deixará de se refletir nas eleições parlamentares do ano que vem.
Lula tem dito repetidas vezes aos seus pares do PT que vai ser fundamental ampliar as bancadas governistas para melhorar a correlação de forças no Congresso em seu eventual próximo mandato como presidente. Entretanto, todo o esforço neste sentido é perturbado pelo próprio comportamento de Lula e dos partidos da sua coligação eleitoral. Nos últimos dias assistimos a uma manobra que bem exemplifica a dificuldade de se apresentar uma cara distinta da direita para o eleitorado ter o que escolher.
Lula fez um acordo com Hugo Motta e nomeou um indicado do presidente da Câmara para um ministério e comemorou o feito apontando para a possibilidade de rachar o direitoso União Brasil com um terço da atual bancada apoiando a sua (do Lula) reeleição. Pode até ser que isto aconteça, mas o preço será diluir a identidade política do candidato e facilitar a reeleição dos trânsfugas do União Brasil. Como melhorar a bancada progressista desta forma?
4.
Outro exemplo é a própria votação da dosimetria. É claro que a direita tinha votos para derrotar a posição contrária ao favorecimento aos golpistas, mas este é um caso claríssimo em que a opinião pública se colocou com ampla maioria (63,3%, na pesquisa Alas/Intel) contra o refresco ao golpismo.
O governo e os partidos de esquerda tinham tudo a ganhar junto ao eleitorado com uma postura veemente denunciando a manobra da anistia disfarçada. Ao invés disso, o governo e seus partidos fazem um acordão oportunista e saem lambuzados do episódio, como já tinha acontecido na votação do PL da Blindagem.
O acordão oportunista visava ganhar vantagens orçamentárias para o ano eleitoral. Na justificativa do senador Jacques Wagner o governo teria 20 e tantos bilhões a mais disponíveis, mas para que mesmo? Terá o governo alguma política social nova para lançar em 2026? A única de que ouvi falar foi a gratuidade do transporte urbano, mas a formulação ainda está nos primeiros passos. Benefício para quem? Os mais pobres? Como vai ser acessado? Quanto vai custar?
Não foi essa política ainda em gestação que o senador do PT citou, mas sim a importância de se trazer o déficit público para um patamar “mais sustentável”. E quem o Lula quer atrair eleitoralmente com esta mensagem? Quem bate loucamente nesta tecla é a Faria Lima e a mídia convencional, mas a meu ver o Lula pode zerar o déficit público e não vai ganhar nem a sombra de um apoio para a sua reeleição.
O empresariado brasileiro é antipetista e antilulista de carteirinha e por isso mesmo apoiou o “mito” sem piscar e vai repetir a dose na próxima eleição, seja quem for o candidato contra o Lula.
A tentativa de provar para o empresariado que os governos petistas foram muito mais benéficos para o nosso capitalismo tupiniquim do que qualquer outro chega a ser patético. Não deixa de ser verdade o muito de benesses que foram concedidas aos mais variados setores, em particular o agronegócio, mas os malvados ruralistas continuam odiando o seu benfeitor e dando corda (e dinheiro) para o golpismo.
É esta conciliação permanente que torna difícil diferenciar este governo e os partidos que o apoiam da direitalha de oposição (mas também dentro do governo!) que busca derrotá-lo no ano que vem. A política de Lula sempre foi a de tentar agradar todo mundo, distribuindo benesses para os pobres, mas gastando muito mais com os ricos. E o complicado é que os pobres nem sempre percebem o quanto foram apoiados e, mais ainda, nem sempre são agradecidos. As pesquisas mostram o quanto o Lula perdeu de seguidores entre os mais pobres e talvez isto se explique pelo fato de que outras fontes de benesses estão cada vez mais presentes para concorrer com o governo federal.
5.
As eleições de 2024 foram muito claras ao mostrar a correlação entre a derrama de emendas e o voto, com clara manifestação favorável à direita e aos prefeitos e vereadores incumbentes. É verdade que uma eleição municipal se presta mais do que uma nacional para o exercício deste tipo de influência, mas o importante é notar o quanto as máquinas eleitorais estão sendo azeitadas nos municípios pelos fundos amealhados pelo Congresso.
A tendência é a renovação dos mandatos da maioria direitosa atual. Sem uma forte denúncia do comportamento oportunista, corrupto e antipovo desta maioria o eleitor vai olhar para o conjunto dos candidatos ao Congresso e ter dificuldades de ver diferenças notáveis e acabar votando em quem lhe aportou algo lá onde ele mora.
Enquanto escrevia este texto o Congresso votou a Lei de Diretrizes Orçamentárias e se deu um presente de Natal de 11 bilhões que vem se somar aos 50 bi já previstos e orçados desde 2025 e aos 5 bi do fundo eleitoral. Este fundo eleitoral recebeu um aumento de 400% ou 4 bi a mais. O total das benesses auto presenteadas pelo Congresso chegam a 65 bilhões de reais, sendo que 15 bi foram incluidos na proposta do relator nas negociações do Congresso.
Estes 15 bilhões a mais foram tirados dos recursos previstos para os seguintes programas: Auxílio gás – 300 milhões; Pé de meia (educação) – 436; Seguro desemprego – 391; Abono salarial – 207; Farmácia popular – 500; Bolsas da CAPES – 300; Universidades – 500; Benefícios previdenciários – 6,2 bilhões.
Estes cortes pesados em programas de interesse social chegaram a 8,834 bilhões e não consegui saber de onde foram tirados os outros quase 7 bilhões que completaram a farra dos 15 bilhões a mais dirigidos para a reeleição dos deputados e senadores, alcançando a espantosa soma total de 66 bilhões. Aparentemente, os 20 bi ganhos no PL das isenções e Bets/Fintecs foram em boa parte comidos no aumento dos recursos para as emendas e fundo eleitoral.
A votação foi simbólica, o que indica um acordo de lideranças para aprovar a LDO. Em outras palavras, todos os partidos, da extrema direita até a esquerda se lambuzaram nesta votação escandalosa.
6.
Para que se tenha uma ideia do peso dos gastos com emendas e fundo eleitoral basta comparar com o orçamento total dos 19 ministérios menos aquinhoados na LDO, que chegou a 65 bilhões, um bilhão a menos do que os recursos dirigidos para deputados e senadores.
Entre estes ministérios menos aquinhoados (com orçamentos entre 12 bilhões e 203 milhões) encontramos, em ordem decrescente de valores, o da Agricultura e Pecuária, Minas e Energia, Desenvolvimento Agrário, Cultura, Meio Ambiente, Turismo, Esporte, Microempresas, Portos e Aeroportos, Pesca, Desenvolvimento, Indústria e Comércio e outros sete de menor peso.
Apenas os ministérios da Previdência, Desenvolvimento, Assistência Social e combate à Fome, Saúde, Educação, Defesa, Integração e Desenvolvimento Regional e Trabalho tiveram orçamentos maiores do que os recursos dirigidos para emendas e fundo eleitoral somados. Ministérios como Justiça (26 bi), Fazenda (23), Transportes (19), Cidades (17), Ciencia e tecnologia (15) todos com importância estratégica para o país ficaram longe dos 65 bilhões que os congressistas doaram para si mesmos.
E para completar o nosso descalabro orçamentário, o mais alto valor incluído na LDO foi para o pagamento do refinanciamento da dívida pública, 1,83 trilhão que vai para o bolso dos rentistas.
Não sei se o presidente Lula vai vetar este escárnio com o dinheiro público ou se vai fazer mais um agrado para seus “amigos”, Motta e Alcolumbre. É improvável que exerça o poder de veto (que ele sabe que será derrotado), já que houve um acordo entre todos os partidos para votar esta LDO, os da oposição e os da base governista.
Mas mesmo que Lula marque uma posição contrária aos cortes em programas sociais de alta sensibilidade para poder culpar o Congresso quando ele derrubar o seu veto, a capitalização política ficará com ele. Os partidos governistas, mais uma vez, estarão malvistos junto com a oposição aos olhos do eleitorado. Como pedir votos para ganhar força no Congresso depois deste papelão?
Com rios de dinheiro disponíveis para irrigar as bases eleitorais da maioria direitista (e da minoria de esquerda) o jogo eleitoral, no que concerne a Câmara e o Senado, vai se dissociar do voto para a presidência da República e caminharemos para mais 4 anos com Lula prisioneiro da mediocridade, da fisiologia e do direitismo do Congresso.
Lula segue confiando em fazer gastos de impacto positivo na economia, no emprego, na renda e nos programas sociais neste seu último ano de governo. Ele parece confiar na sua capacidade de puxar os votos para deputados e senadores para eleger os seus fiéis, mas esta estratégia está condenada pela incapacidade demonstrada pela base parlamentar governista de se demarcar do pântano da maioria fisiológica e direitista, amarrada nos acordos de “governabilidade” promovidos pelo próprio governo.
Com esta mediocridade política dominante teremos, na melhor das hipóteses, a eleição de Lula e de um Congresso tão ruim ou pior do que o atual. Haddad pretende se afastar do ministério da Fazenda para coordenar a elaboração de um plano de governo ambicioso para o próximo quatriênio, voltado para as necessidades de um desenvolvimento sustentável e inclusivo.
Pode até gerar um bom projeto de país, mas como convencer o eleitor que os partidos da base governista poderão executá-lo depois de anos se lambuzando em acordos confusos com a direita majoritária? Pobre país!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

