A PEC da Blindagem: o ápice do corporativismo e a inversão de prioridades no Congresso Nacional
A aprovação da PEC revela, de forma cristalina, a face mais obscura do corporativismo político brasileiro
Na noite da última terça-feira, dia 16 de setembro de 2025, a Câmara dos Deputados aprovou a chamada PEC da Blindagem (PEC 3/2021), uma proposta que altera de maneira profunda o sistema de responsabilização penal de parlamentares. Sob o argumento de que seria necessário “proteger a atividade parlamentar”, o texto restabelece mecanismos que favorecem deputados e senadores investigados por crimes, ao exigir autorização prévia do Congresso para a abertura de processos e ao dificultar prisões. O gesto legislativo, longe de fortalecer a democracia, simboliza um corporativismo nocivo, um oportunismo revoltante e, sobretudo, uma grave inversão de prioridades em um país que clama por justiça, segurança e equidade. Nos dias subsequentes, a repercussão negativa da aprovação tem se intensificado, com deputados emitindo pedidos públicos de desculpas e juristas denunciando a inconstitucionalidade da medida, sinalizando um possível freio no Senado Federal — embora a pressão corporativista persista como uma ameaça latente à responsabilização política e ao controle democrático.
O conteúdo da PEC é bastante simbólico. Ela traz de volta a necessidade de aprovação das Casas Legislativas para processar parlamentares por crimes — uma regra que foi eliminada em 2001 exatamente para combater a impunidade. Além disso, determina que decisões sobre prisões em flagrante e análises de processos sejam feitas por maioria absoluta em votações abertas, mas a obrigatoriedade de deliberação no Parlamento ainda pode atrasar muito a punição criminal. Outra alteração controversa é a expansão do foro privilegiado, que passaria a incluir presidentes nacionais de partidos com representação no Congresso, protegendo-os de julgamentos em tribunais de primeira instância para crimes comuns. Para piorar, a Casa Legislativa teria 90 dias para decidir sobre pedidos do Supremo Tribunal Federal (STF), precisando de maioria absoluta para autorizar a abertura de ações. Se o prazo acabar sem uma decisão, o processo começa automaticamente, mas toda essa burocracia já cria um grande obstáculo para a responsabilização, podendo até impedir ações contra corrupção envolvendo emendas parlamentares, como alertam especialistas em transparência pública.
A aprovação da PEC revela, de forma cristalina, a face mais obscura do corporativismo político brasileiro. Em vez de legislar para o interesse público, o Parlamento dedica-se a proteger a si mesmo. Não se trata apenas de uma salvaguarda institucional, mas de uma blindagem desenhada para beneficiar diretamente parlamentares investigados por corrupção, desvio de recursos e outros crimes que vêm sendo objeto de operações recentes. A ampla adesão política também chama atenção: líderes da oposição, como o PL, articularam o texto ao lado de partidos da base governista, como PSB, PSD e PDT. Até mesmo parte da bancada do PT aderiu ao projeto. Quando o interesse é preservar a classe política, as divergências ideológicas desaparecem e dá-se lugar a uma unidade que raramente se vê em pautas sociais ou econômicas. Contudo, a reação imediata revelou de forma contundente as fissuras latentes dessa coalizão, evidenciando suas fragilidades internas: deputados como Pedro Campos (PSB-PE), que se arrependeu publicamente por ter trabalhado em modificações ao texto mas reconhecido o “caminho errado”, e Sylvie Alves (União Brasil-GO), que admitiu “covardia” ao alterar seu voto inicial contra sob pressão de lideranças, emitiram desculpas formais, citando a fúria de eleitores nas redes sociais e o temor de desgaste eleitoral. Até mesmo cinco parlamentares do Partido dos Trabalhadores, incluindo Odair Cunha (PT-MG) e Jilmar Tatto (PT-SP), justificaram seus votos favoráveis com argumentos de “prerrogativas parlamentares”, mas o tom defensivo reflete o custo político da manobra.
O contexto em que a PEC foi ressuscitada torna ainda mais evidente seu caráter oportunista. Ela surge como reação direta à atuação do STF em casos que abalaram a República, como a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado e a prisão do ex-deputado Daniel Silveira, mas também como uma retaliação velada ao Judiciário e ao Executivo — um recado explícito de “não mexam conosco”, articulado em paralelo à discussão da PL da Anistia para perdoar envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro e à ofensiva recente do ministro Flávio Dino contra irregularidades nas emendas PIX, com suspensões de repasses milionários para municípios suspeitos de desvios, ordens de investigação pela Polícia Federal sobre R$ 694 milhões em 964 emendas e determinação de cronograma de fiscalização pela AGU e TCU em apenas 15 dias, ameaçando diretamente dezenas de parlamentares de diversos partidos implicados em esquemas de corrupção via pagamentos instantâneos. Sob o discurso de “combater abusos” da Corte e “proteger a soberania do Legislativo”, parlamentares erguem, na prática, um escudo contra investigações incômodas. A narrativa de vitimização é visível: deputados bolsonaristas, como Gustavo Gayer (PL-GO), sustentam que se trata do fim da “chantagem” e da “perseguição” do Supremo. Contudo, a crítica da deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) desmonta esse argumento — a proposta garantiria ao Congresso uma autoautorização para punição por qualquer tipo de crimes, inclusive gravíssimos como assassinato e pedofilia, onde ninguém poderia ser preso e condenado sem aval dos pares, perpetuando a impunidade de outrora. Nos dias seguintes à votação, essa crítica ganhou eco acadêmico: juristas como Flávia Bahia, da FGV Direito Rio, classificaram a PEC como inconstitucional por violar cláusulas pétreas da separação de poderes e o princípio republicano da publicidade, enquanto Roberto Dias, da FGV-SP, a rotulou de retrocesso na transparência, criando uma “categoria privilegiada” que mina a igualdade perante a lei. Wilton Gomes, da USP, foi mais enfático, alertando para o fomento ao corporativismo e à impunidade desproporcional, prevendo sua declaração de inconstitucionalidade pelo STF caso avance.
A maior tragédia dessa manobra, porém, é a inversão de prioridades. Enquanto o país enfrenta crises graves em saúde, educação, segurança e desigualdade social, o Congresso dedica tempo e energia a uma pauta que só interessa a si próprio. Projetos de interesse direto da população, como o PL da Isenção do Imposto de Renda, que beneficia quem ganha até cinco mil reais, e a MP da Tarifa Social de Energia, que amplia descontos na conta de luz para famílias de baixa renda, foram adiados pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), para dar espaço à votação da blindagem e à anistia dos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro. O contraste é chocante: em meio a uma sociedade traumatizada pela escalada da violência urbana, pela precariedade das delegacias e pela insuficiência de efetivos policiais, parlamentares ocupam-se em ampliar privilégios e discutir aumento do número de cadeiras na Casa. Como destacou a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), há um enorme descompasso entre o interesse público e as prioridades do Congresso, que prioriza blindar parlamentares em vez de votar pautas como a isenção de IR ou o fim da escala 6x1; o deputado Ivan Valente (PSOL-SP) criticou o retorno do voto secreto como uma forma de anular o Judiciário e chantagear o Executivo; e o deputado Bohn Gass (PT-RS) reforçou que a imunidade parlamentar não pode ser confundida com impunidade, revelando um Parlamento que caminha na contramão das necessidades nacionais. Essa desconexão, agravada pela votação secreta prevista na PEC — mecanismo já usado em cassações e que agora se estenderia a prisões em flagrante —, só reforça o sentimento de alienação popular, como evidenciado pela avalanche de críticas nas redes e pela pressão que levou ao engavetamento aparente da proposta no Senado.
As consequências desse retrocesso são graves. Em primeiro lugar, a Justiça perde eficácia: ao restringir a atuação do STF e das instâncias inferiores, o Congresso mina o princípio de igualdade perante a lei, criando uma casta de intocáveis. O projeto pretende retomar privilégios abolidos pela Emenda Constitucional nº 35/2001, que, influenciada por pressões internas e recomendações internacionais por maior transparência e combate à impunidade, eliminou a necessidade de autorização da Câmara para o julgamento de crimes comuns de parlamentares pelo STF, permitindo que o processo tenha seguimento desde a expedição do diploma, com a Casa sendo apenas comunicada para, se desejar, solicitar a sustação. Ao restabelecer barreiras à responsabilização penal, a PEC da Blindagem viola o princípio do não retrocesso em matéria de Direitos Humanos, comprometendo a igualdade perante a lei e o acesso à justiça, direitos protegidos por tratados internacionais como o Pacto de San José da Costa Rica. Em segundo, a credibilidade institucional do Legislativo, já corroída, sofre novo abalo. A reação popular não tardou: termos como “PEC da Bandidagem” dominaram as redes sociais, traduzindo a indignação diante de mais um episódio de autoprivilegiamento, e senadores como Randolfe Rodrigues (Rede-AP) declararam o texto “inaceitável”, prometendo voto contrário por representar um retrocesso à PEC 10/2013, que extinguiu o foro privilegiado para crimes comuns, e por minar a transparência com o voto secreto. Finalmente, a mensagem simbólica é devastadora — ao dificultar processos e prisões, o Parlamento legitima a ideia de que seus membros estão acima da lei, estimulando a impunidade e fragilizando a democracia, como atestam análises que preveem o enterro da proposta no Senado, onde resistências transversais do PL ao PT e ameaças de arquivamento ganham força.
A PEC da Blindagem é, portanto, um projeto antidemocrático, corporativista e oportunista. Não fortalece a atividade parlamentar, mas a associa de maneira indelével à impunidade e ao privilégio. É dever da sociedade civil, do Ministério Público, da imprensa e de juristas resistir a esse avanço obscurantista. O Senado Federal, como casa revisora, tem agora a responsabilidade de frear a proposta — e os sinais parecem ser promissores, com o presidente da CCJ, Otto Alencar (PSD-BA), designando o senador Alessandro Vieira (MDB-SE) como relator, um jurista que pode instrumentalizar o repúdio suprapartidário. Senadores já se manifestaram em tom de repúdio, como Otto Alencar, que em declaração recente contra a PEC afirmou que “a repulsa à PEC da Blindagem está estampada nos olhos surpresos do povo”, e Randolfe Rodrigues, que aposta na não tramitação da matéria para preservar a transparência. O futuro do Brasil não se constrói com privilégios parlamentares, mas com pontes para a cidadania: saúde, educação e segurança para todas e todos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.