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Salvio Kotter

Escritor, tradutor e editor da Kotter Editorial, que vem publicando grandes autores de livros de política de cunho progressista, e também livros de filosofia e de literatura.

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A morte civil como método

Se nada for feito, a repetição continuará a ditar o curso da história. Continuaremos a ver líderes e pensadores progressistas submetidos a execuções sem sangue

Boaventura de Sousa Santos (Foto: ABR)

O conceito que desnuda o crime

Na recente entrevista de Boaventura de Sousa Santos a Leonardo Attuch, surgiu uma expressão que merece lugar na história política e intelectual do nosso tempo: morte civil. Não é apenas uma metáfora eficaz, mas um conceito rigoroso. Ele descreve o que sucede à vítima do cancelamento: o banimento social, a condenação perpétua, a impossibilidade de existir no espaço público. Mas, além disso, o termo revela a natureza do gesto acusatório: se há uma morte, há também assassinos. O cancelador não é apenas um “crítico”, é um carrasco.

A tese de Attuch

Foi Attuch quem articulou os fios, e com notável perspicácia: há um ataque orquestrado contra as principais lideranças progressistas do Brasil. A ligação entre Boaventura, Silvio Almeida e Alysson Mascaro não é casual, mas sinal de uma estratégia. Os três foram alvos do mesmo expediente de difamação, um modus operandi já conhecido: transformar lideranças em párias simbólicos, condenando-os à “morte civil”.

A força da tese está em mostrar o padrão: o que se aplica a um, repete-se nos outros. E aqui emerge a comparação essencial: a engrenagem do Me Too, em sua versão mais instrumentalizada, funciona como a Transparência Internacional em seu momento de glória punitivista. Ambas se apresentaram como justas e virtuosas; ambas operaram como máquinas de destruição. Foi assim que a Transparência Internacional assassinou simbolicamente a reputação de Lula e de outros expoentes da esquerda, amparada no discurso da luta anticorrupção. Hoje, o mesmo expediente se volta contra Boaventura, Almeida e Mascaro — desta vez, travestido de defesa moral das mulheres.

Uma história antiga

Essa nem é uma invenção do presente. A destruição da reputação do adversário é técnica antiga, e a literatura já a praticou. Um exemplo? Euclides da Cunha, em Os Sertões. Ao mesmo tempo que ele construiu um monumento literário, entregou um serviço à elite do sertão, os coronéis, notadamente ao Barão de Jeremoabo. Monumento, porque a obra permanece como uma das realizações mais altas da literatura brasileira. Serviço, porque, sob a máscara da empatia, Euclides degradou a imagem de Antônio Conselheiro. Retratou-o como um místico ignorante, quando era, na realidade, um refinado escritor que dominava o francês e o latim. Mais grave: incorporou ao próprio livro trechos de detratores do Conselheiro, mas dissimulando o gesto, como se fosse simples descrição objetiva.

Foi Pedro de Lima Vasconcelos, em Canudos: de Antonio Conselheiro a Lula da Silva - Belo Monte, quem demonstrou com precisão como esse mecanismo operou: um movimento sub-reptício que, sob a aparência da grande literatura, executava a morte simbólica do adversário. Aparentemente o mesmo que hoje reencontramos, com novas máscaras, nas campanhas do Me Too e da Transparência Internacional.

O inimigo mascarado

O que torna tudo mais cruel é que o ataque não vem do inimigo declarado, mas daquele que se apresenta como aliado. A denúncia feita por quem se diz “amigo” tem força devastadora; já a denúncia de um adversário, por previsível, perde valor. Eis a chave: é no disfarce, no simulacro de virtude, que reside o veneno.

O caso de Alysson Mascaro é emblemático: foi o mesmo veículo que publicou a Vaza Jato - e que, por isso, parecia aliado das forças democráticas - quem lhe preparou a armadilha. A lógica é invariável: o alvo é sempre uma liderança progressista, e o método, sempre o linchamento simbólico.

A necessidade de resposta

A entrevista de Boaventura, nesse sentido, ultrapassa o campo da defesa pessoal - é um gesto político com densidade conceitual e implicações públicas. Ao nomear a 'morte civil', ele não apenas restitui à vítima sua dignidade simbólica, como também expõe a nudez moral dos que acusam sem provas. Mais que isso: reafirma seu lugar como aliado das mulheres nas lutas mais urgentes e silenciadas do nosso tempo.

Precisamos escolher se devemos dar crédito a denúncias abstratas, ou para fatos consumados. Ao lado das mulheres da Maré, Boaventura apoiou a legalização do edifício que viria a se tornar o Museu da Favela - um gesto contra o apagamento. Com as mulheres do Quilombo da Ilha de Maré, enfrentou a devastação ambiental provocada pela Petrobras na Baía de Todos os Santos, reconhecendo nelas não apenas vítimas, mas protagonistas de resistência. Ouviu as marisqueiras, quase sempre relegadas à invisibilidade, e com elas aprendeu a ecologia do cuidado. Esteve com as mulheres Kaingang e as indígenas de Roraima na luta pela demarcação da Raposa Serra do Sol, não como observador, mas como cúmplice solidário.

Uma comitiva indígena foi a Coimbra para o agradecer, liderada por Sonia Guajajara. O cocar e o bastão de mando que lhe ofereceram constituem, segundo Boaventura "talvez, o mais precioso doutoramento honoris causa que já recebi."

Sua ética se mostra, antes de tudo, uma ética da escuta. Sua política, uma política do vínculo. Boaventura não apenas escreveu sobre as mulheres — ele caminhou com elas, foi transformado por elas e, em muitos momentos, defendeu com firmeza e ternura os saberes e as lutas que elas encarnam. O respeito que lhes dedicou nunca foi abstrato: foi presença, afeto e compromisso.

A partir da tese lançada por Attuch, impõe-se uma tarefa: transformar essa reflexão em obra coletiva. Um livro, por exemplo, que reúna Boaventura, Silvio Almeida e Mascaro, e que possa contar também com o próprio Attuch como parceiro. A eles, somar especialistas em redes sociais e algoritmos, psicanalistas, juristas, sociólogos políticos, e ainda depoimentos de quem possa atestar a conduta dos acusados. O resultado seria um duplo gesto: denunciar o padrão e oferecer instrumentos de defesa para as vítimas futuras.

Epílogo

A história ensina, mas só a quem deseja escutá-la. Ontem foi Antônio Conselheiro, degradado pela pena de Euclides da Cunha, que, mesmo erguendo um monumento literário, serviu à elite ao fabricar a caricatura de um visionário. Hoje são Boaventura de Sousa Santos, Silvio Almeida e Alysson Mascaro, atingidos por engrenagens mais complexas, porém idênticas em essência: o prestígio da imprensa, das plataformas globais, das instituições supostamente virtuosas.

Se nada for feito, a repetição continuará a ditar o curso da história. Continuaremos a ver líderes e pensadores progressistas submetidos a execuções sem sangue, mas não menos cruéis: mortes simbólicas, exílios forçados, condenações sem apelação. A morte civil é a pena capital do nosso tempo — invisível, porém devastadora.
Mas se há um crime, há também a possibilidade de resistência. Nomear o gesto é o primeiro passo. Denunciar seu padrão é o segundo. O próximo será construir um contra-ataque coletivo, capaz de desarmar o simulacro da virtude e devolver a palavra àqueles que dela foram privados.

Só assim poderemos impedir que novas vítimas sejam fabricadas, que novos Conselheiros sejam silenciados, que novas lideranças sejam soterradas sob a máscara hipócrita da moralidade e pior, valendo-se torpemente do sofrimento real de tantas mulheres que historicamente vem sendo vítimas nem só de assédio, como de violação e até extermínio. Valem-se ainda da dificuldade natural de provar algo que ocorre em privado, muitas vezes entre quatro paredes. A nossa empatia, defesa e até devoção às mulheres, por óbvias, nem precisaria ter de ser citada, porque aqui trata-se de apontar que exatamente o sofrimento delas (como de meninas e meninos são vítimas da abjeta pedofilia) pode estar sendo usado para atacar e destruir exatamente líderes que naturalmente são os maiores defensores de seus direitos.

Não obstante esta lamentável realidade, estamos ante uma escolha: ou aceitamos a máquina da morte civil como destino, ou erguemos contra ela um outro monumento — não à destruição, mas à dignidade.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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