Maria Luiza Falcão Silva avatar

Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

97 artigos

HOME > blog

A Menina do Café e o tarifaço de Trump

Enquanto o planeta tenta equilibrar oferta, demanda e clima, o café brasileiro segue como protagonista involuntário de uma disputa maior

Café (Foto: Mohammad Khursheed / Reuters)

Uma menina de cinco anos e o preço do mundo

Foi uma garotinha de cinco anos chamada Madah, em uma fazenda próxima ao Distrito Federal, quem me explicou o que está acontecendo com o mundo. De short jeans e cabelo preso num laço amarelo, ela disse, com a gravidade de quem dá uma entrevista à imprensa internacional: — “Eu não gosto do Lula porque o café está caro.”

Pensei na profundidade dessa frase. Por trás de um comentário infantil escondia-se a lógica crua dos mercados globais: clima extremo, tarifaço de Trump, especulação financeira e as tormentas do comércio internacional — tudo resumido na xícara da manhã. O café, que já foi símbolo da abundância tropical e do cheiro de lar, transformou-se no termômetro das tensões entre o Sul e o Norte, entre o que se planta e o que se taxa.

Do cafezal mineiro à Bolsa de Nova York

Os números ajudam a entender o espanto da menina. Em 2024, o Brasil exportou 50,44 milhões de sacas de 60 quilos, um recorde histórico segundo o Cecafé. E os preços, em fevereiro de 2025, atingiram níveis inéditos: R$ 2.769,45 para o arábica e R$ 2.087,05 para o robusta, segundo o Cepea/Esalq.

A bonança durou pouco. Com a colheita de março e o alívio parcial da oferta, os preços recuaram quase pela metade: em julho, o arábica estava em R$ 1.682,70, e o robusta, em R$ 975,70. Ainda assim, o consumidor brasileiro não teve trégua. O café moído acumulou 18 meses de alta, somando quase 100% de inflação até junho de 2025. Só em julho veio o primeiro alívio: uma deflação tímida de -1,01%.

O problema é que, enquanto o preço descia nas fazendas, subia nas conversas diplomáticas.

Trump descobre o poder de uma xícara

Em agosto, Donald Trump, recém-reeleito e sempre teatral, anunciou um tarifaço de 50% sobre produtos brasileiros, deixando o café de fora da lista de exceções. Foi o estopim de uma comédia internacional: a maior potência consumidora de café do planeta — com 30% da demanda suprida pelo Brasil — decidiu punir justamente o produto que mais precisa importar.

No Brasil, o gesto soou como heresia. O café é mais que uma commodity: é um modo de vida. Nas redes sociais, memes surgiram com slogans como “Café é soberania nacional” e “Não se brinca com o expresso do brasileiro”. Analistas lembraram que, sem o grão tropical, o americano médio talvez não acordasse para trabalhar — um risco sistêmico maior que qualquer déficit fiscal.

O presidente do Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé), Márcio Ferreira, resumiu com ironia diplomática: “As tarifas são proibitivas para se comprar café brasileiro.”

Da geada mineira à geopolítica global

A situação ficou ainda mais surreal quando, nos dias 10 e 11 de agosto, geadas atingiram o Cerrado Mineiro, destruindo parte dos cafezais. Perdas estimadas entre 400 mil e 600 mil sacas reacenderam o temor da escassez. A Conab revisou a safra de arábica para 35,2 milhões de sacas, 11% menor que no ano anterior.

Enquanto isso, o Itaú BBA e o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, da sigla em inglês) disputavam previsões: 38,7 milhões para o primeiro e 40,9 para o segundo. Os números, mais do que estatísticas, viraram armas de argumentação nos corredores do comércio global.

A partir daí, o mercado inverteu o rumo. Em 31 de agosto, o arábica disparou para US$ 386 por cem libras-peso na Bolsa de Nova York, enquanto a robusta atingiu US$ 4.815 por tonelada em Londres — altas de 34% e 44%, respectivamente, em apenas um mês. No Brasil, a saca do arábica saltou para R$ 2.323, e a do robusta, para R$ 1.534 algo em torno de US$ 8,50/kg e US$ 4,82/kg respectivamente. Com a entressafra de setembro à vista, completava-se o cenário perfeito para a nova escalada de preços.

Torrefadoras em alvoroço e diplomatas em ebulição

No início de setembro, as torrefadoras reagiram. A Melitta aumentou em 15% os preços do grão beneficiado; a 3 Corações, em 10% o torrado e moído e em 7% o solúvel. O café, que já foi moeda de troca e instrumento de ascensão social, tornou-se agora o símbolo de um novo tipo de inflação global: a inflação geopolítica.

Os diplomatas, por sua vez, passaram a medir a temperatura das xícaras. Foi quando se percebeu que as conversas entre Lula e Trump, antes carregadas de desconfiança e ironia, começaram a ganhar um tom quase amistoso.

E por que não? Nada une mais dois presidentes do que uma ameaça simultânea de escassez de café e de carne de hambúrguer.

O café e o hambúrguer: dupla diplomática

A carne bovina, outra vítima do tarifaço, seguiu roteiro semelhante: preços recordes, pressão sobre o consumo americano e aumento do custo dos hambúrgueres — essa entidade cultural que sustenta a classe média dos Estados Unidos.

Com café e hambúrguer sob ataque tarifário, Trump percebeu que o eleitorado norte-americano poderia se voltar contra ele no que mais importa: o café da manhã.

Assim nasceu, discretamente, o diálogo “ameno” entre os dois presidentes. Lula, pragmático e cordial, sabe que a diplomacia moderna se faz mais na mesa do café do que na mesa de negociações. Trump, por sua vez, entendeu que desafiar o Brasil — maior produtor e exportador mundial — é arriscar a paciência de milhões de consumidores norte-americanos viciados em cafeína.

De certa forma, a menina da fazenda do laço amarelo já havia previsto esse impasse: o mundo inteiro depende do café, mas ninguém quer pagar o preço.

O grão como espelho do mundo

Por trás da espuma das xícaras há um retrato preciso da economia global:

  • o clima extremo, que reduz safras e provoca geadas;
  • a especulação financeira, que amplifica movimentos de alta e baixa;
  • as tarifas políticas, usadas como armas de negociação;
  • e o consumo concentrado nas regiões que menos produzem.

O estoque mundial de café no início da safra 2025/26 é o mais baixo em 25 anos — apenas 21,8 milhões de sacas. E a demanda global, de 169,4 milhões, continua subindo. A matemática não fecha, e o preço sobe.

No fundo, o café é uma metáfora perfeita para o nosso tempo: o produto é tropical, mas o lucro é temperado em Wall Street; o risco é agrícola, mas a causa é política; a culpa, claro, é sempre do presidente de plantão.

Café, diplomacia e o gosto amargo do protecionismo

Enquanto o planeta tenta equilibrar oferta, demanda e clima, o café brasileiro segue como protagonista involuntário de uma disputa maior: a que definirá o futuro do comércio internacional. O tarifaço americano abriu uma fissura entre dois mundos — o da produção tropical e o do consumo temperado — que só será superada com diálogo e cooperação.

Mas até lá, seguiremos medindo o humor dos mercados pelo preço do café — e o humor das crianças pelo preço do pão de queijo que o acompanha.

Talvez um dia, quando o aroma da geopolítica se dissipar, a humanidade perceba que o café é o último elo que nos mantém civilizados: ele impede guerras matinais, torna suportável o noticiário e, ocasionalmente, inspira acordos improváveis entre dois presidentes que, por motivos distintos, não querem ver o mundo acordar de mau humor.

Epílogo: lições da menina do café

Voltei à fazenda semanas depois. Madah continuava convicta, mas um pouco mais conciliadora. Disse que agora “talvez gostasse um pouquinho do Lula”, porque o café “tinha ficado mais barato”. Perguntei se ela sabia o que era uma tarifa. Ela pensou um pouco e respondeu:

— “É quando o preço sobe porque o Trump brigou com o Brasil.”

Não há economista que explique melhor.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

Carregando anúncios...