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      Ivan Rios

      Sindicalista, historiador, crítico de cinema, escritor, membro do Comitê Baiano de Solidariedade ao Povo da Palestina, graduando em Direito, militante dos Movimentos de Promoção, Inclusão e Difusão Cultural no Estado da Bahia

      56 artigos

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      A Maçonaria no Brasil: entre o legado da razão e a decadência do elitismo obscurantista

      Entre a luz do Iluminismo e as sombras do autoritarismo, a Maçonaria brasileira enfrenta o desafio de reencontrar sua missão libertadora e humanista.

      Esquadro e Compasso, símbolo da Maçonaria (Foto: Gerada por IA/DALL-E)

      A Maçonaria, desde sua origem moderna no Iluminismo europeu, apresenta-se como uma ordem iniciática dedicada à liberdade de pensamento, à fraternidade entre os povos e ao progresso da humanidade. No entanto, o percurso da Maçonaria brasileira revela uma história marcada por ambivalências: de um lado, sua contribuição decisiva para a Independência, a República e a abolição; de outro, o silêncio, a omissão, e por vezes o apoio direto, a regimes autoritários e antidemocráticos.

      Este artigo propõe uma crítica histórica e filosófica à trajetória recente da Maçonaria no Brasil, sobretudo diante do obscurantismo que se alastrou durante o governo Bolsonaro. Sob uma perspectiva humanista, existencialista e libertadora, busca-se evidenciar os paradoxos que envolvem a ordem no Brasil e propor caminhos para a sua reaproximação com os ideais progressistas que a fundaram.

      A gênese revolucionária da Maçonaria e o mito da neutralidade - A Maçonaria não nasceu para ser neutra. Seu surgimento moderno está diretamente ligado às lutas contra o absolutismo, contra o dogmatismo religioso e em defesa da razão, da ciência, da igualdade civil e da liberdade dos povos. No Brasil, figuras como Luiz Gama, José Bonifácio, Gonçalves Ledo, Rui Barbosa, Castro Alves, Antônio Carlos Gomes (Carlos Gomes) e Benjamin Constant, dentre inúmeros outros, foram protagonistas de movimentos emancipatórios que moldaram a identidade nacional.

      Entre esses nomes, Luiz Gama se destaca como um dos maiores símbolos da luta pela justiça. Nascido livre, mas vendido como escravizado, Gama conseguiu sua própria alforria e se tornou advogado autodidata, libertando centenas de pessoas escravizadas por meio de sua atuação jurídica. Como maçom, ele reforçou os princípios de liberdade e igualdade, tornando-se um dos maiores abolicionistas do país.

      Negar esse legado ou reduzi-lo a uma tradição meramente protocolar, como frequentemente ocorre nas Lojas hoje, é trair o próprio espírito da Maçonaria. O lema “levantar templos à virtude e cavar masmorras aos vícios” deveria ser um chamado à ação, e não apenas uma frase decorativa em rituais.

      Entretanto, o que se observa em muitos quadros da Maçonaria brasileira contemporânea é o oposto: uma aversão ao debate político, um apego servil ao status quo e uma complacência perigosa com figuras que representam tudo o que a Maçonaria historicamente combateu, o obscurantismo, o autoritarismo e a ignorância.

      O bolsonarismo como ponto de inflexão moral - O apoio explícito ou velado de diversos maçons ao projeto político de Jair Bolsonaro representa um dos capítulos mais obscuros e ideologicamente distorcidos da história recente da Maçonaria brasileira. A adesão de membros da ordem, ainda que não institucional, a um governo que subverteu princípios fundamentais da razão e do progresso, promovendo o negacionismo científico, o terraplanismo, o revisionismo histórico, o ataque sistemático às instituições democráticas e a apologia da ditadura militar, expõe uma crise mais profunda: a erosão do horizonte ético e humanista que deveria nortear a Maçonaria como um instrumento de transformação social. Esse alinhamento com forças que representam o retrocesso não apenas contradiz os valores de liberdade, igualdade e fraternidade, mas também coloca em xeque o papel da ordem como guardiã da razão e da justiça.

      Durante o bolsonarismo, assistimos à banalização do mal institucionalizado: ataques à educação, incentivo à violência policial, racismo estrutural naturalizado, LGBTfobia legitimada por discursos oficiais, devastação ambiental em nome do lucro. O que fez a Maçonaria? Em muitos casos, silenciou. Em outros, coadunou-se. Em quase nenhum, resistiu. Essa omissão não é neutra. É cúmplice.

      A Maçonaria, quando fiel aos seus princípios, deveria ser um instrumento de transformação e progresso. Seus membros progressistas sempre estiveram na vanguarda das lutas por direitos e pela construção de uma sociedade mais justa. No entanto, ao longo do século XX e XXI, a ordem passou por momentos de maior conservadorismo, refletindo as mudanças políticas do país. Ainda assim, há grupos dentro da Maçonaria que continuam a defender valores progressistas, reafirmando seu compromisso com a liberdade e a justiça social.

      O paradoxo histórico: glorificar Dom Pedro I e esquecer o povo - Como explicar que uma instituição que foi perseguida por Dom Pedro I e colocada na ilegalidade hoje o exalte como um “maçom notável”? Como conciliar a exaltação à monarquia com o papel protagonista da Maçonaria na Proclamação da República? Como defender causas humanísticas e, ao mesmo tempo, apoiar regimes autoritários que perseguem, torturam, matam e escravizam? Essas contradições são sintomas de um revisionismo acrítico, onde símbolos substituem a reflexão e rituais se esvaziam de sentido histórico.

      Dom Pedro I não foi um campeão da liberdade. Seu governo foi marcado por decisões autoritárias que restringiram direitos e reprimiram opositores. Seu ingresso na Maçonaria, em 1822, foi estratégico, utilizado como ferramenta política para consolidar a independência do Brasil. No entanto, após assumir o trono, ele rapidamente rompeu com a ordem, dissolvendo a Assembleia Constituinte de 1823, impondo uma Constituição autoritária e perseguindo maçons, fechando lojas maçônicas e lançando a instituição na ilegalidade.

      A tentativa de mitificá-lo dentro da Maçonaria revela um esvaziamento crítico que deve ser urgentemente combatido. A ordem, que historicamente se posicionou contra o absolutismo e pela liberdade, não pode se tornar cúmplice de narrativas que distorcem sua própria história. A verdadeira Maçonaria deve resgatar seu papel como instrumento de transformação social, reafirmando seu compromisso com a justiça e a democracia.

      A verdadeira herança maçônica está nos movimentos abolicionistas, nos republicanos de 1889, nos que lutaram contra o Estado Novo, nos que resistiram à Ditadura Militar, e não nos que bajularam o trono ou se calaram diante da repressão.

      O silêncio da Maçonaria durante a ditadura militar e o golpe de 1964 - A Maçonaria brasileira já demonstrou, por diversas vezes, sua capacidade de resistência. No entanto, durante a Ditadura Militar, novamente setores da ordem se aliaram ao poder autoritário, abandonando qualquer compromisso com a liberdade, a justiça e a dignidade humana.

      Em nome de uma pretensa estabilidade institucional, muitos maçons tornaram-se cúmplices de torturas, perseguições, desaparecimentos e censura. Não há como relativizar isso: foi traição aos princípios da ordem.

      O mesmo se repetiu, em menor escala, durante o governo Bolsonaro, onde parte da Maçonaria demonstrou mais preocupação com protocolos e formalidades do que com a barbárie política e ética que se instalava no país.

      A crise contemporânea: ignorância, apatia e elitismo - A Maçonaria, que um dia formava pensadores, educadores, juristas, poetas, médicos e líderes revolucionários, hoje abriga, com honrosas exceções, homens que se orgulham de não ler, que se limitam a repetir jargões ritualísticos, que não compreendem a história nem da própria instituição à qual pertencem. Trata-se de um emburrecimento institucionalizado.

      Essa degradação intelectual reflete uma Maçonaria que, em muitos de seus círculos, abandonou sua vocação histórica de transformação social para se tornar um espaço de vaidade e status, mais preocupado com títulos e formalidades do que com a elevação moral e a luta por justiça. O que deveria ser um instrumento de progresso e emancipação se converte, em diversas instâncias, em um reduto de alienação, onde o compromisso com a liberdade e a igualdade dá lugar ao conformismo e à complacência com estruturas opressivas.

      Esta Maçonaria contemporânea, salvo raras exceções, resiste ao progresso, teme a justiça social e se distancia das causas populares, tornando-se um espaço de acomodação e indiferença. Em vez de se posicionar ao lado dos menos favorecidos, demonstra desconfiança em relação aos movimentos sociais, silencia-se diante do extermínio da juventude negra, ignora a precarização do trabalho, negligencia a degradação ambiental e se esquiva do enfrentamento à corrupção sistêmica. Seu discurso, frequentemente revestido de um falso moralismo, apenas reforça privilégios e perpetua a retórica de uma elite avarenta e intelectualmente desonesta.

      O que poderia ser um agente de transformação e um espaço de reflexão crítica muitas vezes se converte em cúmplice da estagnação, legitimando desigualdades e fortalecendo estruturas de dominação. Para honrar sua essência, a Maçonaria deve resgatar seu papel histórico, promovendo mudanças reais e reafirmando seu compromisso com a justiça, a liberdade e a dignidade humana.

      A verdadeira Maçonaria, aquela que se alinha aos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, não pode se furtar ao seu papel histórico. Não há neutralidade diante da injustiça. O silêncio é conivência. A omissão é cumplicidade. E a recusa em enfrentar essas questões é a prova definitiva de que, para muitos, a Maçonaria deixou de ser um instrumento de transformação para se tornar apenas um símbolo esvaziado de significado.

      Não há Maçonaria autêntica sem luta social.

      Caminhos de reconstrução: do templo simbólico ao templo político e ético - Se a Maçonaria quiser sobreviver como instituição relevante no século XXI, precisará revolucionar-se a partir de dentro. Abaixo, propomos alguns caminhos concretos:

      • Educação política maçônica: Instituir estudos obrigatórios sobre democracia, direitos humanos, história dos movimentos sociais e filosofia crítica. A Maçonaria precisa formar militantes da liberdade, não apenas ritualistas.
      • Resgate do papel social: Retomar a participação ativa em movimentos pela justiça social, contra o racismo, a homofobia, o machismo e todas as formas de opressão. Isso é coerente com o lema “tornar feliz a humanidade”.
      • Rompimento com figuras autoritárias: Estabelecer, oficialmente, a incompatibilidade entre valores maçônicos e o apoio a figuras ou regimes que preguem o autoritarismo, o sectarismo, a intolerância, o extremismo, a violência e sobretudo a exclusão social.
      • Aliança com forças progressistas: A Maçonaria deve dialogar com os setores da sociedade que lutam pela transformação social, não contra eles. Isso inclui os sindicatos, os movimentos populares e os defensores dos direitos humanos.
      • Revisão histórica crítica: Reavaliar oficialmente a postura da ordem frente a momentos históricos em que se omitiu ou se alinhou ao autoritarismo. Isso inclui um pedido público de desculpas pela postura de setores da Maçonaria durante a Ditadura Militar.

      “Tornar feliz a humanidade”, uma urgência e não um mero símbolo - A Maçonaria brasileira encontra-se diante de uma encruzilhada histórica. Ou reafirma com coragem seus princípios fundadores, liberdade, igualdade, fraternidade, laicismo, autodeterminação e justiça, ou se condenará à irrelevância, tornando-se apenas uma instituição medíocre, anacrônica e vazia, uma verdadeira sombra do que um dia foi, um espaço esvaziado de significado, onde rituais se repetem mecanicamente e palavras antes carregadas de propósito se transformam em meros formalismos.

      Se os maçons brasileiros abdicarem de seu papel na transformação social, se continuarem a se esquivar dos desafios contemporâneos e a se acomodar na nostalgia de um passado idealizado, estarão fadados a se tornar um museu de homens envelhecidos, presos a um discurso que já não compreendem e incapazes de enxergar a urgência das lutas que se desenrolam ao seu redor.

      Resgatar o projeto maçônico como força transformadora é possível, mas exige muito mais do que belas palavras e paramentos. Será necessário romper com a complacência, sujar os pés na lama, descer aos infernos dos tormentos sociais, encarar objetivamente a realidade, enfrentar os próprios fantasmas, desafiar o elitismo reacionário e, acima de tudo, reencontrar o povo. Sem esse compromisso genuíno com a justiça e a equidade, a Maçonaria corre o risco de se tornar apenas um símbolo esvaziado de significado, distante das verdadeiras batalhas que definem o presente e moldam o futuro.

      A essência revolucionária da Maçonaria e o imperativo da coerência histórica - No âmago da tradição maçônica repousa uma máxima que transcende a mera liturgia: “tornar feliz a humanidade”. Esse princípio, mais do que um lema ou um ritual simbólico, deve ser compreendido como o verdadeiro norte da ordem, uma missão ética e política que desafia seus membros a transformar a realidade social a partir do compromisso com a justiça, a liberdade e a fraternidade.

      Quando essa máxima é reduzida a uma formalidade vazia, a Maçonaria perde sua razão de ser. Tornar feliz a humanidade não significa apenas desejar um mundo melhor em abstração, mas implica em ações concretas que questionem as estruturas opressoras, desconstruam as desigualdades e ampliem as possibilidades de emancipação para todos os seres humanos. É um chamado para que a ordem assuma seu papel histórico como agente de mudança, enfrentando os poderes que limitam o desenvolvimento humano e a dignidade.

      Este é um desafio radical e revolucionário. Pois, no mundo contemporâneo, marcado por crises econômicas, sociais, ambientais e políticas, a felicidade coletiva depende diretamente da superação dos sistemas de exploração e dominação. Requer coragem para romper com o conservadorismo, para abrir diálogo com os movimentos populares e para transformar as práticas internas, muitas vezes marcadas por elitismo e apatia.

      A verdadeira revolução maçônica, portanto, é uma revolução ética e social. Ela exige que cada maçom encarne essa missão em sua vida pública e privada, promovendo a inclusão, a solidariedade e o pensamento crítico. Somente assim será possível que a ordem recupere seu prestígio histórico e cumpra o propósito para o qual foi criada.

      E, neste percurso, a história será implacável. Ela não esquece nem perdoa contradições, silêncios cúmplices ou desvios ideológicos. A coerência entre discurso e prática é o que define a autenticidade de uma instituição que pretende se manter viva e relevante.

      Assim, a Maçonaria brasileira está convocada a não apenas reiterar suas palavras, mas a transformar suas ações, mostrando ao mundo que seu compromisso com a felicidade da humanidade é, de fato, revolucionário e que, no tribunal da história, saberá responder com integridade e coragem.

      “Tornar feliz a humanidade” não é apenas um ideal ritualístico. É uma tarefa revolucionária.

      E a história, como sempre, cobrará coerência.

      Ivan Souza Rios é Mestre Maçom, iniciado na Maçonaria em 20/11/2010, membro da Loja Maçônica Fraternidade São Felipense nº 232 da GLEB (Grande Loja Maçônica do Estado da Bahia).

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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