A luta das pessoas com deficiência é também luta de classes
Inclusão é resistência coletiva, pessoas com e sem deficiência lado a lado por uma democracia sem opressões
Por Michelle Catarine Machado e Naira Rodrigues Gaspar
Setembro é o mês da luta das pessoas com deficiência. No dia 21, celebramos o Dia Nacional de Luta pelos Direitos das Pessoas com Deficiência, uma data que nos convida a refletir sobre conquistas, desafios e desigualdades ainda persistentes. Mas, antes de falar de direitos, precisamos falar de quem somos, quantos somos e em que condições vivemos.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2025, 8,9% da população brasileira tem algum tipo de deficiência. Entre nós, 21% ainda são analfabetos, um índice quatro vezes maior que o da população sem deficiência. Esses dados nos levam a refletir sobre uma exclusão estrutural que marca a história do Brasil: um país erguido sobre o genocídio de povos originários, a escravização de africanos e a exploração brutal da classe trabalhadora, em que corpos considerados “inúteis” ou “improdutivos” eram descartados, entre eles, pessoas com deficiência.
Neste artigo, escolhemos falar em terceira pessoa. Não por distanciamento, mas por consciência. Somos uma jornalista sem deficiência e uma fonoaudióloga com deficiência, ambas ativistas de Direitos Humanos que, por trajetórias distintas, sabem o quanto foi difícil chegar até aqui. Essa alternância de vozes marca um compromisso coletivo de luta: ao mesmo tempo em que denunciamos a exclusão, não deixamos que a narrativa se feche em apenas uma vivência. A terceira pessoa é uma estratégia política para dizer que este debate não pertence só a nós, pessoas com deficiência, mas a toda a sociedade.
A luta das pessoas com deficiência não é apenas identitária, é também luta de classes. Interessa às elites que sigamos segregados, subempregados e invisíveis, e o capacitismo, nesse contexto, funciona como engrenagem que sustenta desigualdades, apresentando-nos como objetos de caridade, mas negando-nos como sujeitos de direitos. Enquanto nossas vidas seguem tuteladas, os mais ricos continuam acumulando poder e fortuna. O caso recente do cantor Nattan, que pagou para que um cinegrafista beijasse uma mulher com nanismo em pleno palco, sob risadas da plateia, escancara essa lógica: seguimos vistos como espetáculo, e não como pessoas. A Associação Nanismo Brasil repudiou o episódio e lembrou ao país que “não somos piada, somos gente”, evidenciando a urgência de romper com a cultura que historicamente ridiculariza, segrega e descarta corpos com deficiência.
Essa herança de exclusão, no entanto, também produziu resistência. No cinema, obras como Bicho de Sete Cabeças (2001), de Laís Bodanzky, e o documentário Crip Camp: Revolução pela Inclusão (2020), dirigido por Jim LeBrecht e Nicole Newnham, disponível na Netflix, revelam como pessoas consideradas fora do padrão ou “improdutivas” foram segregadas, mas também como a resistência coletiva transformou dor em luta por direitos. É nessa memória de resistência que esta mobilização de setembro precisa se apoiar: não como celebração simbólica, mas como chamado à luta, à renovação política e à construção de uma sociedade justa, inclusiva e emancipatória. A campanha dedicada à luta das pessoas com deficiência, portanto, deve ser mais do que comemoração: precisa ser convocação à luta, uma luta que só será vitoriosa quando pessoas com e sem deficiência caminharem juntas, em igualdade de condições, rumo a uma sociedade democrática e livre de todas as formas de opressão.
Essa reflexão nos ajuda a entender por que avanços sociais e de direitos nunca são definitivos. O capitalismo, o colonialismo e o patriarcado se renovam continuamente, e o capacitismo se insere nesse mesmo mecanismo. Por isso, uma democracia real precisa ser ao mesmo tempo anticapitalista, anticolonialista e antipatriarcal, sob pena de excluir sempre os mesmos corpos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
