A invencível Flotilha de Dragões do Mar
A história julgará o que fizemos e o que nos omitimos de fazer quando a consciência do mundo zarpou em 50 barcos e nos convidou a embarca
Sei muito bem que a Flotilha, sequestrada por Israel, cumpria uma missão humanitária cujo objetivo maior era denunciar o genocídio em Gaza, sem buscar qualquer glória ou vitória. No entanto, me permito usar a bravura desses ativistas como um instrumento para ampliar o coro pela libertação do povo palestino.
Há memórias que não se apagam e que teimam que reaparecer. No litoral do Ceará, quase um século e meio atrás, um homem conhecido como Chico da Matilde, um prático-mor de nome comum, recusou-se a ser indiferente. À frente de seus jangadeiros, olhou para os navios negreiros e disse não. Fechou os portos na força da coragem, impedindo o transporte de seres humanos acorrentados. Aquele homem, que a história batizou de Dragão do Mar, não tinha canhões, não tinha leis a seu favor; tinha apenas a convicção de que há ordens que não devem ser cumpridas e uma cumplicidade que não pode ser aceita. Sua arma foi a jangada. Seu campo de batalha, o mar.
Hoje, em 2025, o espírito indomável do Dragão do Mar parece ter reencarnado em outras águas, sob outras bandeiras, a milhares de quilômetros do Mucuripe. A “Global Sumud Flotilla”, com suas mais de 50 embarcações de 44 países, é a jangada do nosso tempo. E a carga que ela se recusa a aceitar não é a de escravos, mas a de uma cumplicidade silenciosa com a asfixia de um povo inteiro. Os navios que ela desafia não são negreiros, mas modernos navios de guerra que impõem um bloqueio medieval à Faixa de Gaza. A lógica, no entanto, é a mesma: um ato de desobediência civil que usa o mar como campo de batalha para expor um massacre que em terra firme se tornou paisagem.
E, para que não pensemos que esta é uma história distante, uma abstração geopolítica, a realidade nos dá um soco no estômago: a bordo da Flotilha, entre médicos e jornalistas de todo o mundo, estavam 16 brasileiros. E entre eles, a deputada federal cearense Luiziane Lins. Sim, uma parlamentar do mesmo Ceará do Dragão do Mar, sequestrada em águas internacionais, em plena missão humanitária, pelas forças armadas de Israel. A ironia histórica é de uma crueldade poética. A herdeira da terra que se libertou da escravidão quatro anos antes da Lei Áurea, tratada como criminosa por levar comida e remédios a um gueto de famélicos, doentes e amputados.
O sequestro de uma representante eleita do povo brasileiro, junto com outros quinze cidadãos, não é um incidente diplomático menor. É uma afronta. É a demonstração cabal de que a lei do mais forte atropelou qualquer resquício de direito internacional marítimo. A interceptação, fora das águas territoriais, é um ato de pirataria. E o silêncio ou a resposta protocolar do nosso Itamaraty seriam uma covardia imperdoável, uma traição à nossa própria história de resistência, encarnada na figura de Chico da Matilde.
A conexão entre os jangadeiros de 1881 e os ativistas de 2025 é a espinha dorsal de uma mesma luta pela dignidade. Ambos entenderam que o mar, esse espaço de trânsito e liberdade, pode ser transformado em uma fronteira de opressão ou em um caminho para a libertação. Dragão do Mar e seus companheiros usaram seu domínio do mar para sabotar a economia da escravidão. A Flotilha usa a universalidade do mar para sabotar a política do cerco. Em ambos os casos, é a resistência não-violenta que expõe a brutalidade do sistema que enfrenta. A força do jangadeiro não estava em afundar o navio negreiro, mas em impedi-lo de operar, em humilhá-lo moralmente. A força da Flotilha não está em seu poder de fogo inexistente, mas em obrigar uma potência militar a cometer um ato de banditismo à luz do dia para impedir a chegada de leite em pó e medicamentos.
A Anistia Internacional, em seu relatório de ontem (01/10), foi precisa ao afirmar que Israel busca “deliberadamente matar de fome os palestinos”. Não há eufemismo que resista a essa acusação. A fome como política de Estado. O bloqueio não como medida de segurança, mas como um torniquete que se aperta lentamente sobre o pescoço de dois milhões de pessoas. É diante dessa constatação que o ato da Flotilha adquire seu verdadeiro significado. Não é apenas um gesto de caridade. É solidariedade e um ato de confronto político. É a recusa em aceitar a normalização de um crime contra a humanidade. É a encarnação do ṣumūd, a palavra árabe que significa resiliência, perseverança teimosa diante da opressão.
Vivemos, como já apontei aqui, a era da “infowar”, a guerra de narrativas. Imagino como os jornais da corte, em 1881, retrataram o Dragão do Mar. Provavelmente como um agitador, um subversivo, uma ameaça à ordem e à propriedade. Hoje, a máquina de propaganda sionista, com seus porta-vozes fluentes em inglês e sua rede de robôs em mídias sociais, retrata os ativistas da Flotilha como cúmplices do terrorismo. A linguagem muda, o método é o mesmo: desumanizar o dissidente para invalidar a sua causa. Criminalizar a solidariedade para que a injustiça possa seguir seu curso sem mais testemunhas presenciais.
A Flotilha, com sua diversidade de participantes — de parlamentares a médicos, de jornalistas a cidadãos comuns —, representa o que resta de uma consciência cívica global. Eles sabem que sua carga é mais simbólica do que material; não são alguns quilos de arroz ou caixas de antibióticos que resolverão a crise, mas sim o ato de desafiar a normalização da injustiça. É o gesto de navegar contra a corrente da indiferença, de afirmar que o direito internacional não pode ser uma carta de intenções a ser rasgada ao sabor das conveniências geopolíticas. Eles não tinham como sair derrotados: se chegassem a Gaza, seria um fato histórico. Não chegaram. E criou-se outro fato histórico. A denúncia contra Israel é potente, mas a resposta, previsivelmente, foi a de sempre: acusar os ativistas de provocação e de servirem ao Hamas, um roteiro surrado que busca criminalizar a solidariedade.
E enquanto isso, a diplomacia global patina na retórica vazia da “solução de dois Estados”, o que soa cada vez mais como uma piada de mau gosto diante da realidade dos assentamentos que fatiam e devoram o território palestino. Essa solução não é mais viável, e insistir nela é uma forma de conivência, um salvo-conduto para que o status quo de ocupação e apartheid se perpetue.
A presença de 16 brasileiros entre os sequestrados deve servir como um ponto de inflexão para a política externa do nosso país. Não basta uma nota de repúdio. O Brasil, em nome de sua própria história e em defesa de sua soberania e de seus cidadãos, tem o dever de liderar uma resposta mais contundente no cenário global. É hora de usar nosso prestígio no Sul Global e em fóruns como o BRICS para propor ações concretas.
Reitero minha proposta: a criação de um corredor humanitário permanente para Gaza, protegido por uma força-tarefa internacional, que não dependa do aval de Israel. E mais: o Brasil deveria iniciar um movimento para a aplicação de sanções a indivíduos e empresas diretamente cúmplices na manutenção do bloqueio. Se os canais tradicionais estão entupidos pela hipocrisia das grandes potências, precisamos criar novos canais de pressão.
A coragem dos navegantes da Flotilha não foi um ato isolado. Foi um grito do “não” do Dragão do Mar, que atravessou um oceano e mais de um século para se espalhar pelo no Mediterrâneo e pelo mundo. Aquela jangada de outrora e estes barcos de agora nos ensinam que a neutralidade diante da opressão é sempre uma aliança com o opressor. A história julgará o que fizemos e o que nos omitimos de fazer quando a consciência do mundo zarpou em 50 barcos e nos convidou a embarcar. O Brasil, terra do Dragão do Mar, não pode, por vergonha e por dever, ficar no porto.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.