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Gustavo Guerreiro

Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

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A invencível Flotilha de Dragões do Mar

A história julgará o que fizemos e o que nos omitimos de fazer quando a consciência do mundo zarpou em 50 barcos e nos convidou a embarca

Flotilha humanitária Global Sumud (Foto: REUTERS/Nacho Doce)

Sei muito bem que a Flotilha, sequestrada por Israel, cumpria uma missão humanitária cujo objetivo maior era denunciar o genocídio em Gaza, sem buscar qualquer glória ou vitória. No entanto, me permito usar a bravura desses ativistas como um instrumento para ampliar o coro pela libertação do povo palestino.

Há memórias que não se apagam e que teimam que reaparecer. No litoral do Ceará, quase um século e meio atrás, um homem conhecido como Chico da Matilde, um prático-mor de nome comum, recusou-se a ser indiferente. À frente de seus jangadeiros, olhou para os navios negreiros e disse não. Fechou os portos na força da coragem, impedindo o transporte de seres humanos acorrentados. Aquele homem, que a história batizou de Dragão do Mar, não tinha canhões, não tinha leis a seu favor; tinha apenas a convicção de que há ordens que não devem ser cumpridas e uma cumplicidade que não pode ser aceita. Sua arma foi a jangada. Seu campo de batalha, o mar.

Hoje, em 2025, o espírito indomável do Dragão do Mar parece ter reencarnado em outras águas, sob outras bandeiras, a milhares de quilômetros do Mucuripe. A “Global Sumud Flotilla”, com suas mais de 50 embarcações de 44 países, é a jangada do nosso tempo. E a carga que ela se recusa a aceitar não é a de escravos, mas a de uma cumplicidade silenciosa com a asfixia de um povo inteiro. Os navios que ela desafia não são negreiros, mas modernos navios de guerra que impõem um bloqueio medieval à Faixa de Gaza. A lógica, no entanto, é a mesma: um ato de desobediência civil que usa o mar como campo de batalha para expor um massacre que em terra firme se tornou paisagem.

E, para que não pensemos que esta é uma história distante, uma abstração geopolítica, a realidade nos dá um soco no estômago: a bordo da Flotilha, entre médicos e jornalistas de todo o mundo, estavam 16 brasileiros. E entre eles, a deputada federal cearense Luiziane Lins. Sim, uma parlamentar do mesmo Ceará do Dragão do Mar, sequestrada em águas internacionais, em plena missão humanitária, pelas forças armadas de Israel. A ironia histórica é de uma crueldade poética. A herdeira da terra que se libertou da escravidão quatro anos antes da Lei Áurea, tratada como criminosa por levar comida e remédios a um gueto de famélicos, doentes e amputados.

O sequestro de uma representante eleita do povo brasileiro, junto com outros quinze cidadãos, não é um incidente diplomático menor. É uma afronta. É a demonstração cabal de que a lei do mais forte atropelou qualquer resquício de direito internacional marítimo. A interceptação, fora das águas territoriais, é um ato de pirataria. E o silêncio ou a resposta protocolar do nosso Itamaraty seriam uma covardia imperdoável, uma traição à nossa própria história de resistência, encarnada na figura de Chico da Matilde.

A conexão entre os jangadeiros de 1881 e os ativistas de 2025 é a espinha dorsal de uma mesma luta pela dignidade. Ambos entenderam que o mar, esse espaço de trânsito e liberdade, pode ser transformado em uma fronteira de opressão ou em um caminho para a libertação. Dragão do Mar e seus companheiros usaram seu domínio do mar para sabotar a economia da escravidão. A Flotilha usa a universalidade do mar para sabotar a política do cerco. Em ambos os casos, é a resistência não-violenta que expõe a brutalidade do sistema que enfrenta. A força do jangadeiro não estava em afundar o navio negreiro, mas em impedi-lo de operar, em humilhá-lo moralmente. A força da Flotilha não está em seu poder de fogo inexistente, mas em obrigar uma potência militar a cometer um ato de banditismo à luz do dia para impedir a chegada de leite em pó e medicamentos.

A Anistia Internacional, em seu relatório de ontem (01/10), foi precisa ao afirmar que Israel busca “deliberadamente matar de fome os palestinos”. Não há eufemismo que resista a essa acusação. A fome como política de Estado. O bloqueio não como medida de segurança, mas como um torniquete que se aperta lentamente sobre o pescoço de dois milhões de pessoas. É diante dessa constatação que o ato da Flotilha adquire seu verdadeiro significado. Não é apenas um gesto de caridade. É solidariedade e um ato de confronto político. É a recusa em aceitar a normalização de um crime contra a humanidade. É a encarnação do ṣumūd, a palavra árabe que significa resiliência, perseverança teimosa diante da opressão.

Vivemos, como já apontei aqui, a era da “infowar”, a guerra de narrativas. Imagino como os jornais da corte, em 1881, retrataram o Dragão do Mar. Provavelmente como um agitador, um subversivo, uma ameaça à ordem e à propriedade. Hoje, a máquina de propaganda sionista, com seus porta-vozes fluentes em inglês e sua rede de robôs em mídias sociais, retrata os ativistas da Flotilha como cúmplices do terrorismo. A linguagem muda, o método é o mesmo: desumanizar o dissidente para invalidar a sua causa. Criminalizar a solidariedade para que a injustiça possa seguir seu curso sem mais testemunhas presenciais.

A Flotilha, com sua diversidade de participantes — de parlamentares a médicos, de jornalistas a cidadãos comuns —, representa o que resta de uma consciência cívica global. Eles sabem que sua carga é mais simbólica do que material; não são alguns quilos de arroz ou caixas de antibióticos que resolverão a crise, mas sim o ato de desafiar a normalização da injustiça. É o gesto de navegar contra a corrente da indiferença, de afirmar que o direito internacional não pode ser uma carta de intenções a ser rasgada ao sabor das conveniências geopolíticas. Eles não tinham como sair derrotados: se chegassem a Gaza, seria um fato histórico. Não chegaram. E criou-se outro fato histórico. A denúncia contra Israel é potente, mas a resposta, previsivelmente, foi a de sempre: acusar os ativistas de provocação e de servirem ao Hamas, um roteiro surrado que busca criminalizar a solidariedade. 

E enquanto isso, a diplomacia global patina na retórica vazia da “solução de dois Estados”, o que soa cada vez mais como uma piada de mau gosto diante da realidade dos assentamentos que fatiam e devoram o território palestino. Essa solução não é mais viável, e insistir nela é uma forma de conivência, um salvo-conduto para que o status quo de ocupação e apartheid se perpetue.

A presença de 16 brasileiros entre os sequestrados deve servir como um ponto de inflexão para a política externa do nosso país. Não basta uma nota de repúdio. O Brasil, em nome de sua própria história e em defesa de sua soberania e de seus cidadãos, tem o dever de liderar uma resposta mais contundente no cenário global. É hora de usar nosso prestígio no Sul Global e em fóruns como o BRICS para propor ações concretas.

Reitero minha proposta: a criação de um corredor humanitário permanente para Gaza, protegido por uma força-tarefa internacional, que não dependa do aval de Israel. E mais: o Brasil deveria iniciar um movimento para a aplicação de sanções a indivíduos e empresas diretamente cúmplices na manutenção do bloqueio. Se os canais tradicionais estão entupidos pela hipocrisia das grandes potências, precisamos criar novos canais de pressão.

A coragem dos navegantes da Flotilha não foi um ato isolado. Foi um grito do “não” do Dragão do Mar, que atravessou um oceano e mais de um século para se espalhar pelo no Mediterrâneo e pelo mundo. Aquela jangada de outrora e estes barcos de agora nos ensinam que a neutralidade diante da opressão é sempre uma aliança com o opressor. A história julgará o que fizemos e o que nos omitimos de fazer quando a consciência do mundo zarpou em 50 barcos e nos convidou a embarcar. O Brasil, terra do Dragão do Mar, não pode, por vergonha e por dever, ficar no porto.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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