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Roberto Xavier

Pesquisador em políticas públicas. Dedica-se a estudar as tensões entre Estado, democracia e desigualdade no Brasil contemporâneo

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A forma e o fracasso: notas sobre a violência de Estado no Rio de Janeiro

O Estado fluminense, tomado por milícias, interesses privados e dinâmicas de captura, opera hoje dentro de uma racionalidade perversa

Rio de Janeiro (RJ) - 28/10/2025 - Dezenas de corpos são trazidos por moradores para a Praça São Lucas, na Penha, zona norte do Rio de Janeiro, após chacina policial matar ao menos 121 pessoas (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Sobre o que está ocorrendo no Rio de Janeiro, e que fique claro desde o início, não falo apenas da megaoperação policial de hoje, nem de governos específicos que imaginam resolver um problema estrutural com estratégias de enfrentamento e estatísticas de apreensão. Falo, antes, da forma como o Estado brasileiro, e particularmente o fluminense, tem se exercido no campo da segurança pública desde, pelo menos, Leonel Brizola. Ou mesmo antes dele.

Há algo de paradoxal nesse debate: o consenso, tanto à esquerda quanto à direita, de que o Estado detém o monopólio do uso legítimo da força, conceito que Max Weber consagrou em 1918, parece ter se tornado um álibi para a reprodução da violência e não para o seu controle. Weber dizia que o Estado é a comunidade humana que, dentro de um território, reivindica para si o monopólio da coação física legítima. Mas, se o monopólio da força se converte em rotina de extermínio, cabe perguntar: 

E quando a legitimidade se perde? Em que momento o exercício da força deixa de ser prerrogativa de Estado e passa a ser sintoma de sua falência?

O problema, como se costuma dizer, não está no conceito, mas na forma. E “a forma”, aqui, é tudo. É a maneira como o Estado se faz presente, ou ausente, nos territórios populares, é o tipo de corpo sobre o qual ele exerce seu poder e é a gramática de medo e controle que organiza essa presença. Desde a chegada da família real portuguesa, nossas polícias foram concebidas não como um instrumento de proteção, mas como uma força de contenção: uma instituição moldada para garantir a ordem dos de cima, reprimindo qualquer desvio dos de baixo. 

A lógica colonial nunca nos deixou; apenas se sofisticou, agora amparada pelo discurso técnico da “segurança pública”. É por isso que, embora se reconheça a legitimidade da ação policial como função de Estado, é impossível endossar a maneira como ela vem sendo conduzida. As operações que hoje atravessam as favelas do Rio não violam apenas os direitos humanos, mas também o próprio pacto federativo. O Rio não produz drogas nem armas; é o palco, não a origem, do comércio que sustenta o crime. Por isso, a linha de frente desse combate deveria ser federal, articulada com políticas de inteligência, controle de fronteiras e repressão financeira. 

Ao insistir em tratar o problema como um assunto local, o Estado brasileiro reproduz a lógica do bode expiatório: faz da favela o campo de prova de sua impotência.

Há, também, uma erosão silenciosa dos valores democráticos. Em outros tempos, lideranças que exaltavam o confronto armado não passariam do palanque de um pequeno município. Hoje, o discurso beligerante e o imaginário da guerra se tornaram moeda eleitoral. O eleitorado passou a reconhecer a violência como sinônimo de autoridade e a morte como índice de eficiência. Nesse ambiente, o Estado deixa de proteger e passa a performar, como se o espetáculo do confronto substituísse a política de segurança.

Mais grave ainda é o modo como essa guerra se faz instrumento político. As forças policiais, que deveriam atuar como expressão do Estado e não do governo de turno, tornam-se extensão do discurso ideológico do Palácio da Guanabara. A confusão entre Estado e governo, entre legalidade e lealdade política, é uma das marcas mais perigosas da crise brasileira. Foucault lembrava que o poder moderno se legitima menos pelo direito de matar e mais pela gestão da vida; no Rio, parece termos retrocedido: o Estado voltou a governar pela morte, escolhendo quem pode e quem não pode viver.

É verdade que há quem defenda essa política de enfrentamento com argumentos compreensíveis, o avanço do narcotráfico, o domínio das milícias, o colapso institucional. Mas a insistência nessa forma de combate é a confissão de que o Estado perdeu o controle sobre o próprio monopólio da força. As milícias, formadas por ex-policiais, são a metáfora cruel desse colapso: o Estado, em sua decomposição, tornou-se o fornecedor de sua própria violência ilegítima.

Tudo isso se agrava porque a guerra às drogas é, antes de tudo, uma guerra social. Ela se exerce seletivamente sobre os mesmos corpos e territórios: os três Ps, pretos, pobres e periféricos. A sociedade carioca, míope e hipócrita, finge não perceber que a cocaína que financia as mortes no Jacarezinho é a mesma que circula nos camarotes da Zona Sul. O que se vê é uma moral de classe travestida de política pública, um pacto tácito que naturaliza a morte de uns em nome da tranquilidade de outros.

Nesse sentido, o tráfico é menos um “mercado” que obedece à lei da oferta e da procura, e mais uma forma de governo dos territórios abandonados. Ali, o Estado não perdeu apenas o controle das armas, mas também da legitimidade. E, ao tentar recuperá-la por meio da força, apenas reforça o que Agamben chamaria de “estado de exceção permanente”, zonas em que a vida é reduzida à sua nudez biológica, sem direitos nem garantias.

Não há, portanto, nada de novo sob o sol. Governos de diferentes orientações ideológicas já experimentaram versões dessa mesma política: Brizola e Benedita, Saturnino e Witzel, uns com mais discurso social, outros com mais fúria punitiva. Nenhum deles conseguiu romper o ciclo. O problema não é apenas ideológico, é estrutural. A esquerda, quando no poder, parece constrangida diante da necessidade de exercer a face dura do Estado; a direita, por outro lado, parece encontrar prazer em fazê-lo. Ambas, por motivos diferentes, reproduzem a mesma engrenagem de exclusão e fracasso.

O Estado fluminense, tomado por milícias, interesses privados e dinâmicas de captura, opera hoje dentro de uma racionalidade perversa: faz guerra contra sua própria população para simular autoridade. E a sociedade, ao aceitar essa simulação, se torna cúmplice. Como em toda economia, há produtores, intermediários e consumidores. Enquanto o foco permanecer sobre os intermediários, aqueles que morrem todos os dias na ponta visível da cadeia, o problema apenas se desloca. A operação “resolve” a insegurança do asfalto à custa da segurança da favela.

No fim, talvez reste apenas a constatação amarga de que o Estado brasileiro continua a exercer com eficiência apenas uma de suas funções definidoras: a de matar. Não porque não saiba o que faz, mas porque essa é, historicamente, a forma mais fácil, e mais cruel, de reafirmar sua presença. O que está errado não é o conceito, é a forma. E, no Rio de Janeiro, essa forma tem cheiro de pólvora, cor de sangue e endereço certo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.