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Marcelo M. Nogueira

Ggraduado em Direito e mestre em Políticas Públicas e Formação Humana pela UERJ. Pesquisador em direitos humanos (UFRJ e PUC-RS), foi coordenador executivo da ABJD e atua como colaborador da Comissão de Estudos e Combate ao Lawfare da OAB-RJ)

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A fábula do mercador de toga

A República vacila quando seus guardiões trocam coragem por conveniência

Esplanada dos Ministérios (Foto: Agência Brasil )

No coração da cidade erguida sobre um planalto, existia um templo de mármore e vidro, sustentado por colunas nas quais se gravavam palavras como Constituição, Democracia e Direito. Ali, sacerdotes de toga negra deveriam velar pelo fogo sagrado da justiça, incumbidos de impedir que os bárbaros apagassem a chama que iluminava a República.

Dizia-se que, ao vestir a toga, cada sacerdote se transformava em guardião de um pacto antigo, comprometido a julgar com firmeza, equilíbrio e coragem. Contudo, entre eles surgiu um sacerdote diferente: não se destacava por bravura, mas por sua habilidade em evitar confrontos, escondendo a própria hesitação atrás de gestos calculados. Seu adorno não era a chama da coragem, mas os fios e acessórios capilares que ostentava com certa vaidade, como se o verniz da aparência pudesse substituir a têmpera da retidão.

Quando hordas bárbaras, atiçadas por falsos profetas, invadiram a cidade e profanaram os palácios, abalando as colunas do templo, esperava-se que todos os sacerdotes erguessem o látego da lei contra os conspiradores. A maioria o fez, denunciando os mercadores da desordem e clamando por punição. Mas o sacerdote covarde, enfeitado de pompa mas vazio de coragem, não teve ímpeto de levantar o símbolo da justiça contra os vendilhões. Preferiu instalar-se como cambista no átrio, abrindo uma banca de argumentos frágeis. Declarou que o templo não era lugar para tal julgamento, que os bárbaros não podiam ser julgados ali, e que a comoção havia toldado os olhos da justiça.

Grande parte do povo, perplexo, murmurava: como poderia aquele que um dia ocupara o trono maior do templo transformar-se em mercador de conveniências? Como podia ele, que tem por dever ser um guardião da Constituição, agir como quem negocia moedas falsas em praça pública?

Não era a primeira vez que o sacerdote covarde agia assim. Quando surgiram pergaminhos acusando os semeadores de mentiras, ele primeiro os defendeu, depois declarou-os inúteis, deixando investigações à deriva. Quando se tratava de discutir o uso de ervas mágicas antigas e polêmicas que dividiam opiniões, ele abriu as portas para o debate, mas as fechou ao primeiro sopro vindo do palácio vizinho. E quando mercadores poderosos ofereceram delações em troca de verdade, ele as rejeitou, acusando conspirações, como quem vê sombras onde os outros veem provas.

Cada gesto seu era moeda trocada. Cada silêncio, uma mercadoria. Cada voto, um contrato tácito. No templo, a justiça se tornava mercado, e os princípios eram pesados em balança de conveniência.

Naquele tempo, recordava-se a antiga cena do Templo de Jerusalém, onde Cristo, em ira santa, expulsou os vendilhões, derrubou as mesas e espalhou as moedas pelo chão. Ali, ninguém tolerou a profanação. Mas no templo moderno, quem evidenciaria agora a insatisfação? Seriam os próprios sacerdotes, arrependidos? Ou o povo, cansado, exigiria o compromisso da responsabilidade e da memória?

Assim segue a fábula: o templo, ainda erguido, mas com seus átrios profanados, aguarda que a justiça deixe de ser mercadoria. Pois nenhuma cidade resiste quando aqueles incumbidos de defendê-la preferem os adornos da vaidade, o compromisso com a conveniência, o tilintar das moedas ao peso da coragem e da verdadeira justiça.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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