A democracia militante e a Defesa intransigente do STF
O roteiro de agressões às estruturas democráticas é internacional
O momento presente impõe, àqueles que se debruçam sobre os fenômenos políticos nacionais, uma reflexão inadiável. Acabou-se o tempo das meias-palavras, da pretensa neutralidade acadêmica que se esquiva do embate real. Testemunhamos uma investida sistemática que, já faz alguns anos, golpeia as estruturas republicanas com intensidade sem precedentes, e constitui obrigação moral de todo observador atento denunciar o que se desenrola diante de nossos olhos. Essa investida, como já se tornou evidente, tem como alvo principal o Supremo Tribunal Federal. Os discursos que proliferam, com tenacidade que mereceria melhor emprego, almejam não somente questionar, mas minar a credibilidade, desgastar a legitimidade e, em última instância, demolir um dos alicerces fundamentais de nosso regime democrático. E aqui encontra-se o cerne da questão: proteger o STF, neste momento histórico, equivale a proteger a própria Constituição de 1988.
Para entender a mecânica desse processo, é necessário retroceder algumas décadas. A opção constitucional de 1988 foi profundamente intencional. Após períodos extensos de autoritarismo do regime militar, os constituintes decidiram conscientemente robustecer o Judiciário. O objetivo, amplamente compreendido, era estabelecer um mediador poderoso, um protetor capaz de, diante de turbulências ou desmandos dos demais poderes (seja o Executivo, seja o Legislativo), atuar para garantir a prevalência do ordenamento jurídico e dos princípios constitucionais. Uma salvaguarda institucional, podemos dizer. Tratou-se de decisão deliberada, um arranjo destinado, especificamente, a impedir o ressurgimento de experiências autoritárias. O Brasil experimenta, neste momento, seu ciclo democrático republicano mais duradouro, uma realização que muitos de nós, testemunhas de períodos mais sombrios, jamais tomaríamos como garantida. O arranjo institucional vigente, apesar de suas falhas, constitui o alicerce dessa continuidade. É exatamente contra ele que as investidas radicais se voltam, com o propósito evidente de nos fazer olvidar que essa engenharia democrática, por mais intrincada que pareça, é nossa barreira contra a desordem.
Examinemos, então, as alegações particulares, esse compêndio de falsidades que, como uma pandemia, contamina grupos de mensagens e canais digitais, envenenando o diálogo democrático. A primeira grande mistificação é a acusação de “ativismo judicial”. Essa crítica, em sua versão mais rudimentar, alega que o STF estaria “criando leis” e usurpando atribuições do Parlamento. O ponto que os críticos ignoram é que a amplitude de atuação do STF está prevista na própria Constituição. Como nossa Carta é muito mais detalhada que a americana, ela mesma estabeleceu instrumentos como o controle de constitucionalidade. Por meio dele, partidos políticos e outras organizações podem apresentar recursos diretos ao Supremo, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), para questionar leis. Isso não configura “ativismo”, mas sim arquitetura institucional. A chamada “judicialização da política”, tão utilizada pelos detratores do poder judiciário, não decorre de uma apropriação indevida, mas do amplo acesso ao STF que a própria Constituição estabeleceu. O Tribunal é convocado, instado a pronunciar-se sobre conflitos que os demais poderes não lograram ou não desejaram solucionar. Em outras palavras, o STF opera nos limites das atribuições que lhe foram conferidas, e os protestos sobre “ativismo” representam, quase sempre, a frustração daqueles que foram derrotados no processo democrático e agora pretendem alterar as normas ou, ainda pior, destruir todo o sistema.
Surge, na sequência, a alegação de que o Tribunal estaria suprimindo a “liberdade de expressão”. Essa, dentre todas as distorções, é a que mais me desperta uma revolta contida. Permito-me afirmar, embora seja leigo no assunto, que não há, em nosso sistema legal, nem em qualquer democracia consolidada do planeta, convém ressaltar, algo como uma prerrogativa absoluta de proferir qualquer coisa, sem enfrentar as consequências do que foi dito. Liberdade de expressão jamais representou, nem representará, uma autorização irrestrita para difamar, para vilipendiar, para propagar inverdades, para instigar delitos. O direito de se expressar encontra seu limite onde principia o direito alheio de não ser alvo de falsidades, de difamações, de agravos. E neste ponto, novamente, proteger o STF significa proteger o convívio civilizado. O Tribunal não está “amordaçando” ninguém, mas fazendo valer a legislação existente, especialmente o Código Penal, que define crimes como calúnia, difamação e apologia ao crime, inclusive no ambiente digital. A noção de que o espaço virtual constitui uma zona livre de responsabilidades legais é quimérica. Como diz reiteradas vezes o Ministro Alexandre de Moraes, o que vale no mundo físico deve valer no ambiente virtual. A responsabilização por notícias falsas não representa um atentado à liberdade, mas a salvaguarda da democracia. E é exatamente essa diferenciação, que os extremistas e seus porta-vozes mais conhecidos se negam a reconhecer, que está no epicentro do conflito. Eles pretendem embaralhar, propositalmente, a garantia da livre manifestação de ideias com a ausência de punição para a falsidade e o delito. Não se trata de um equívoco fundamental, mas de uma estratégia calculada e desonesta.
Admito que este tema me exaure. É uma cantilena repetida até a náusea, desmentida por evidências, por estatísticas e por todas as missões internacionais de observação eleitoral existentes. A narrativa de fraude eleitoral é um mito. A verdade é que a Justiça Eleitoral, comandada pelo TSE, trabalha de forma técnica, imparcial e aberta há mais de duas décadas, sem qualquer histórico de fraude comporvada. As urnas eletrônicas, com seus vários níveis de proteção e verificações abertas ao público, nunca registraram sequer uma fraude confirmada. Jamais. Nenhuma. Zero absoluto. A narrativa da fraude, consequentemente, é uma assombração que atende a um objetivo único: desacreditar o processo democrático. Não se almeja com essas críticas o aprimoramento do sistema, mas destruir a credibilidade popular nos resultados eleitorais, preparando o terreno para, em momento oportuno, contestá-los. É uma tática de erosão, simples assim, que busca solapar o alicerce de nossa democracia, que é, precisamente, o reconhecimento dos resultados eleitorais.
E alcançamos, finalmente, a narrativa da “perseguição política”, que, em minha avaliação, representa a mais ameaçadora de todas, pois procura atribuir caráter pessoal a crimes contra a sociedade. As apurações conduzidas pelo STF, direcionadas aos propagadores de desinformação, aos promotores de intentonas golpistas, aos que intimidam as instituições, obedecem a procedimentos legais. Possuem fundamento jurídico. O inquérito das notícias falsas, para exemplificar, foi instaurado mediante provocação do chefe do Ministério Público Federal. As detenções e diligências são determinadas após solicitações da Polícia Federal e da Procuradoria Geral da República, e mediante exame minucioso dos magistrados. Não se configura uma “perseguição” a adversários. Os crimes apurados, como a tentativa de ruptura institucional, a supressão violenta do regime democrático e as intimidações a magistrados e suas famílias, prejudicam toda a sociedade, não somente o suposto “perseguido” individual. Quando um conjunto de pessoas reivindica intervenção das Forças Armadas, ou o fechamento do Parlamento, ou a remoção de ministros do Supremo por vias inconstitucionais, não está exercendo uma prerrogativa política: está perpetrando um atentado contra o Estado Democrático de Direito. E o STF, nessa circunstância, não está “caçando” ninguém, mas cumprindo sua missão de proteger o Estado. O processo legal adequado, apesar dos críticos o ignorarem, está sendo observado. O próprio Tribunal, inclusive, indeferiu solicitações de suspeição do ministro Alexandre de Moraes, ratificando a regularidade dos procedimentos. Afirmar que isso constitui “perseguição política” é falsear os fatos, é converter delito em posicionamento, é participar do jogo da desinformação.
Esse panorama nos conduz a uma noção essencial na teoria política: a “democracia militante”. O que o STF realiza atualmente não representa uma agressão à democracia, mas sua proteção legítima. O conceito, amplamente reconhecido no mundo, é claro e contundente: uma democracia possui o direito e a obrigação de proteger-se contra aqueles que pretendem destruí-la internamente. As providências adotadas, por mais severas que possam aparentar a um espectador menos atento, objetivam conservar, não aniquilar, o Estado de Direito. Os propagadores da narrativa de uma “tirania judicial” simulam não compreender que o Judiciário autônomo é, juntamente com a imprensa independente e o sistema eleitoral íntegro, um sustentáculo essencial da divisão de poderes. É um antídoto ao despotismo. É o mecanismo de segurança que pode ser utilizado quando o equilíbrio político se rompe.
E assim, alcanço meu argumento conclusivo, que é a análise comparada. O que o Brasil atravessa não constitui fenômeno único. O roteiro de agressões às estruturas democráticas é internacional. O que testemunhamos no Brasil replica o mesmo modelo verificado nos Estados Unidos, na Polônia, na Hungria, e em outras nações onde o radicalismo de direita se fortaleceu. A tática é idêntica: desacreditar as instituições que limitam o poder absoluto do Executivo, abalar a confiança popular nas eleições e na imprensa, preparando o terreno para o autoritarismo de caráter fascista. Isso, para alguém que estuda o assunto há décadas, como este que vos escreve, não representa surpresa alguma. E a proteção da democracia, igualmente, necessita seguir um protocolo: o da atenção permanente, o da defesa inflexível das instituições, o do desmentido metódico de cada falsidade propagada.
As instituições brasileiras, apesar das críticas que recebem, operam adequadamente. Elas nos asseguraram continuidade democrática por mais de três décadas e meia. As investidas contra o STF, portanto, não representam uma tentativa de aperfeiçoar a democracia, mas de debilitá-la, de corroer suas fundações, de instalar o caos. A proteção do Supremo, nessa conjuntura, não constitui um gesto de subserviência, nem de uma elegia à democracia de caráter burguês, da qual almejamos superar um dia, mas, de responsabilidade republicana. Chegou o momento de abandonarmos as ilusões. Não se trata de uma disputa esportiva. Não existem torcidas. Aliás, não existe sequer polarização, como afirmam alguns veículos de comunicação corporativos, pois não há polo com golpistas. O que há são aqueles defendem a democracia e os que trabalham pela sua destruição. E, nessa batalha, não existe lugar para a indiferença.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.