A cidadania assassinada
A escalada de violência no Rio expõe o desprezo do governo estadual pelos princípios básicos da cidadania
O conceito de cidadania, em sua concepção moderna, surgiu no século XVIII, na França, por ocasião da Revolução. Tornou-se habitual e passou a circular entre as pessoas como forma de contestar os tratamentos hierárquicos, abolindo-se até o termo “Senhor” como sinal de respeito nas várias designações de caráter interindividual. Citoyen (isto é, Cidadão) consagrou-se, assim, como símbolo de respeito mútuo e de adesão a conquistas que visavam torpedear, em todas as suas manifestações, as tradições do passado monárquico. Desde então, incutiu-se na mente do mundo contemporâneo a ideia de que todos são iguais perante a lei. Por esse mesmo critério, não cabem distinções sequer entre pobreza e riqueza. Os lemas da Igualdade, da Fraternidade e da Liberdade orientam as diferenças a partir de um patamar elevado, sólido como a noção de privacidade adquirida e defendida.
O governador Cláudio Castro, em seu despreparo e ignorância, transmite a impressão de torpedear, nas palavras e ações, de uma só vez, o conjunto dos ganhos da contemporaneidade. Volta atrás no tempo e nos costumes com duas ou três penadas e ainda se glorifica nas entrevistas, com a cara deslavada, como se representasse um novo tipo de liderança. É incrível a desfaçatez com que, na ordem de massacrar jovens oriundos da pobreza — negros, em sua maioria —, bateu recordes de selvageria. Como se tivesse se colocado acima da legislação e dos costumes, age com o poder de atrasar os ponteiros do relógio. Em um único movimento, manchou para sempre sua biografia de político, disputando com parceiros de ideologia a pecha de genocida.
Na matança da qual teima em se orgulhar, cerca de 120 ou mais vítimas incluíam cidadãos com direito a processos e regras judiciais, que poderiam condená-los ou absolvê-los. A ambição de se fazer rei, com poder absoluto, deve ser punida com a remoção do cargo e avaliação de sanidade mental. É importante lembrar que, no Brasil, não vigora a pena de morte — detalhe que seus seguidores, fardados ou não, desrespeitaram ao cercar e tomar conta do Complexo do Alemão. O regime democrático em vigor, apesar dos que conspiram contra ele, deve se afirmar diante das circunstâncias com o rigor necessário; caso contrário, logo teremos esbirros arrombando as portas de nossas casas para deter e torturar cidadãos, como à época da ditadura.
O martírio ostensivo provocado pela má conduta dos órgãos de segurança, amplamente noticiado pela imprensa local e internacional, exige medidas à altura. O clamor da opinião pública superou as expectativas. O governador imaginava, sem dúvida, que contaria com o apoio da população na conduta criminosa que assumiu. A antipatia despertada pelo banditismo não superou o escândalo que provocou.
É evidente que há um lobby determinando a morte sumária de infratores. Há igualmente, no entanto, junto à sensação geral, a convicção de que indivíduos diferem de animais e não podem ser conduzidos ao matadouro sem uma avaliação criteriosa de seu comportamento. Trata-se de inquérito a ser conduzido pela mais alta corte, com as consequências previsíveis. Impunidade, nunca mais!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
