A campanha contra a PEC das Prerrogativas mimetiza um lacerdismo que criminaliza a política e que fez estragos no passado
PEC das Prerrogativas se deve mais a um espírito de corpo do Legislativo procurando manter seu poder. Daí o amplo apoio que recebeu na Câmara
Dificilmente alguém poderia criar um lema tão infeliz como esse "Congresso inimigo do povo", com que os organizadores da campanha contra a "PEC da bandidagem" (outro nome deslocado) pretendem orientar as manifestações de hoje, numa campanha com apoio inclusive da Globo e do restante da mídia hegemônica.
Há um exagero e uma generalização na reação à iniciativa parlamentar que avança na Câmara dos Deputados. Parlamentares, inclusive de esquerda, são rotulados, injustamente na maioria dos casos, como estando "a serviço do PCC", pelo mero fato de defenderem ou votarem a favor da PEC.
É incorreta a maneira depreciativa com que é encarada a busca, em princípio legítima, de parlamentares por ampliar ou repor as garantias para o exercício do mandato, aliás previstas na Constituição cidadã de 1988. Fortalecer os mandatos deveria ser visto como algo positivo, a favor dos interesses da população representada, e não contra ela.
Os democratas sempre defenderam o aumento, e não a diminuição, das prerrogativas para o exercício do mandato parlamentar. Garantias são conquistas políticas civilizatórias e democráticas. A divergência entre modelos e visões de mundo é principalmente política e econômica.
Não pode ser reduzida a um discurso de cunho moralista onde quem discorda de mim (inclusive no meu campo político) se trata de um bandido a serviço de uma facção criminosa (embora eles existam e sejam um perigo real a ser combatido).
Não devemos emular na prática política as atitudes que caracterizaram tantas operações manipuladoras do passado. A vassoura de Jânio, a falsa indignação de Lacerda e da UDN, o saco roxo de Collor, o caçador de marajás. Todas essas operações manipuladoras serviram à direita e terminaram em tragédia.
Os democratas tradicionalmente defendem um Congresso mais forte. Advogam por um Congresso propositivo e fiscalizador, e não a sua desconstrução sistemática.
Quem sempre na história do Brasil perseguiu parlamentares, cassou deputados e senadores com acusações muitas vezes falsas de corrupção e até fechou a Casa do Povo, foram os ditadores.
A reação destemperada de parte da esquerda agora confunde os fatos. Faz concessões ao sensacionalismo e à manipulação. Existem bandidos no seio do Congresso, mas a imensa maioria dos parlamentares é formada por pessoas que buscam honrar a delegação que receberam de seus eleitores. Pode-se divergir da maioria deles, mas não se pode substituir a divergência com acusações genéricas de corrupção, que poluem o debate político das diferenças sem identificar fatos e individualizar condutas. Isso é render-se a um populismo udenista que sempre foi a marca da direita - e não da esquerda - na história da luta política no Brasil. A ideia não demonstrada de que todos os políticos são ladrões é um preconceito que serve aos que desejam manipular e deixar de lado a verdadeira disputa ideológica. A tarefa é esclarecer os verdadeiros interesses por trás dessa manipulação, pois ela é nebulosa, e se presta à conversão das mobilizações em favor de revoltas de indignados que visam pôr abaixo "tudo que está aí". Em várias situações, a luta contra a "corrupção dos políticos" foi a porta de entrada de eleições desastrosas e golpes. O golpe de 64 e a Lava-Jato ocorreram no bojo de campanhas como esta em que o Congresso é estigmatizado como inimigo do povo e os políticos são retratados como bandidagem.
Em tempo: as manifestações de hoje passaram a agregar também a palavra de ordem "Sem anistia para golpistas". O tema, que deveria ser prioritário, entrou inicialmente secundarizado em relação ao da PEC das Prerrogativas, estigmatizada como a PEC de defesa da impunidade para a bandidagem.
A PEC das Prerrogativas se deve mais a um espírito de corpo do Legislativo procurando manter seu poder. Daí o amplo apoio que recebeu na Câmara, inclusive de parlamentares do PT, cujas cabeças, tingidas de opróbrio, foram de forma injusta colocadas a prêmio. Esse apoio que a PEC recebe não é principalmente de bandidos nem mesmo de bolsonaristas.
Espírito de corpo, vale dizer, com sentido de algum modo natural e até positivo, pois, com todas as contradições, busca não transferir mais poder de uma instituição, o Legislativo, escolhido pelo eleitor, para uma outra instituição que não é diretamente eleita, o Judiciário.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.