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Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres: Caminhos de subversão

Seguimos não apenas sobrevivendo, mas ensinando e inventando modos outros de aprender, conviver e existir em democracia

Ato no âmbito da 5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres (Foto: Sara York / Brasil 247)

Acabo de retornar da 5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, realizada entre os dias 29 de setembro e 1º de outubro, um espaço em que discutimos com intensidade a urgência de ações e políticas de gênero em um Brasil cada vez mais atravessado por disputas morais, retrocessos conservadores e tentativas de silenciamento. Foi impossível não pensar, ao longo dos debates, em como essas discussões atravessam também a educação e a forma como corpos trans e travestis são constantemente tensionados a caber em normatividades sociais, escolares e acadêmicas.

A educação, mesmo quando se pretende inclusiva, muitas vezes funciona como um dispositivo de normatização. Ela administra nomes, regula acessos, organiza registros, define o que pode ou não ser considerado conhecimento legítimo. Para pessoas trans, esse processo significa um enquadramento contínuo: desde a matrícula até o uso de banheiros, passando pelo currículo e pela linguagem. O que está em jogo não é apenas o aprendizado, mas a própria condição de existência nos espaços educacionais.

Ato no âmbito da 5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres
Ato no âmbito da 5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres(Photo: Sara York / Brasil 247)

É nesse ponto que invoco o glitch - usado em contextos científicos a partir de 1940 - como metáfora e prática política. O glitch, entendido como falha, ruído, erro do sistema, mostra como os códigos não são perfeitos, como a ordem normativa pode ser interrompida. Ao invés de ser visto como defeito, o glitch pode ser uma força criativa e subversiva. Na educação, ele acontece quando o nome social desestabiliza o chamamento burocrático; quando o corpo não se ajusta à arquitetura dos uniformes ou dos banheiros; quando epistemologias trans, indígenas, negras ou crip deslocam o currículo eurocentrado.

Esses glitches são mais do que falhas: são potências. Eles revelam que a norma não é natural nem universal, mas sim uma operação de poder que precisa constantemente ser reparada para manter sua coerência. Ao assumir o glitch como estratégia, pessoas trans e aliadas transformam a experiência da falha em resistência criativa e em projeto pedagógico. A escola e a universidade, nesse sentido, podem deixar de ser espaços de adestramento para se tornar lugares de abertura ao inesperado, ao que não cabe, ao que se refaz.

A Conferência mostrou que políticas de gênero e educação não podem ser pensadas separadamente. Se discutimos feminismos interseccionais, direitos sexuais e reprodutivos, combate à violência e igualdade no trabalho, também precisamos falar sobre a escola como campo estratégico de disputa. É nela que se formam subjetividades, se consolidam ou se rompem preconceitos, e se delineia a possibilidade de um futuro menos violento para mulheres cis, travestis, com deficiencia e demais sujeitas dissidentes.

5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres
5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres(Photo: Sara York / Brasil 247)Sara York / Brasil 247

Antes de finalizar lembro que os caminhos de subversão frente às normatizações passam por assumir o glitch como pedagogia viva, que recusa o encaixe forçado e reivindica a diferença como condição de conhecimento. O glitch educacional é político: ao falhar, denuncia as estruturas excludentes; ao insistir, cria brechas de pertencimento; ao se multiplicar, reescreve as possibilidades de futuro. E foi justamente essa a sensação ao sair da Conferência: de que a educação, atravessada pelas políticas de gênero, pode ser glitch - não uma correção ou atualização do sistema, mas um travamento criativo que impede a continuidade da norma e abre espaço para outras formas de aprender, ensinar e existir.

Como venho refletindo em meus escritos acadêmicos e jornalísticos, a democracia não se desfaz apenas com tanques nas ruas. Ela morre lentamente, por dentro, como nos mostram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em Como as Democracias Morrem. Líderes eleitos corroem instituições, atacam a imprensa, desacreditam a oposição e normalizam a violência - e é nesse processo insidioso que vidas trans, lésbicas, negras, ciganas, PcD, refugiadas, e outras tantas já vulnerabilizadas, se tornam ainda mais alvo.

Na educação e(m) mídia, campo no qual atuo como professora, pesquisadora e militante, isso se traduz em dispositivos normativos que pretendem enquadrar corpos e subjetividades: matrículas que resistem ao nome social, currículos que silenciam epistemologias trans, indígenas, negras e crip, banheiros que expulsam ao invés de acolher. A educação, que deveria ser espaço de emancipação, é muitas vezes lugar de exclusão institucionalizada.

Zé Gotinha na 5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres
Zé Gotinha na 5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres(Photo: Sara York / Brasil 247)

Para mim, o glitch se tornou linguagem para pensar a experiência trans na educação e na democracia: não como defeito, mas como potência criativa que expõe a falibilidade da norma. Na escola, ele se manifesta quando um corpo trans desestabiliza uniformes ou linguagens pré-fixadas; na democracia, quando uma travesti como eu ocupa GTs do governo federal - como o GT Intersexo, o GT da Memória LGBTI+ e o GT da Avaliação Biopsicossocial da Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania - abrindo brechas em estruturas historicamente cisheteronormativas.

Os sinais de alerta da erosão democrática são também os sinais do que vivemos diariamente: a rejeição das regras democráticas surge quando parlamentares tentam censurar debates de gênero; a negação da legitimidade do outro aparece no ataque sistemático a intelectuais travestis; a tolerância à violência ecoa nos altos índices de transfeminicídio; e a restrição das liberdades civis se confirma quando pesquisas sobre gênero são atacadas como "ideologia".

Contra isso, o glitch se apresenta como forma de resistência pedagógica e democrática. Ele denuncia exclusões, insiste em existir e multiplica ruídos contra a naturalização da desigualdade. Se, como escrevo em minha tese e em artigos jornalísticos, a travesti é convocada o tempo todo a "falhar" diante da norma, minha proposta é transformar essa falha em gesto político. Ser glitch, nesse sentido, é recusar o encaixe forçado e criar brechas de futuro.

Como intelectual travesti, professora universitária e jornalista científica, sei que minha presença nesses espaços é por si só um glitch democrático: uma falha na engrenagem da cisnormatividade que insiste em governar o Estado e a escola. Ao mesmo tempo, é a prova de que a democracia só se fortalece quando incorpora as vozes que historicamente foram excluídas de suas narrativas oficiais.

A jornalista Sara York na 5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres
A jornalista Sara York na 5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres(Photo: Sara York / Brasil 247)

Por isso, acredito que os caminhos de subversão frente às normatizações, seja na educação, seja na política, passam por assumir o glitch como pedagogia viva e como prática de cidadania. O glitch não corrige a norma: ele a interrompe, a denuncia e a reinventa. Assim, seguimos não apenas sobrevivendo, mas ensinando e inventando modos outros de aprender, conviver e existir em democracia.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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