5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres: Caminhos de subversão
Seguimos não apenas sobrevivendo, mas ensinando e inventando modos outros de aprender, conviver e existir em democracia
Acabo de retornar da 5ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, realizada entre os dias 29 de setembro e 1º de outubro, um espaço em que discutimos com intensidade a urgência de ações e políticas de gênero em um Brasil cada vez mais atravessado por disputas morais, retrocessos conservadores e tentativas de silenciamento. Foi impossível não pensar, ao longo dos debates, em como essas discussões atravessam também a educação e a forma como corpos trans e travestis são constantemente tensionados a caber em normatividades sociais, escolares e acadêmicas.
A educação, mesmo quando se pretende inclusiva, muitas vezes funciona como um dispositivo de normatização. Ela administra nomes, regula acessos, organiza registros, define o que pode ou não ser considerado conhecimento legítimo. Para pessoas trans, esse processo significa um enquadramento contínuo: desde a matrícula até o uso de banheiros, passando pelo currículo e pela linguagem. O que está em jogo não é apenas o aprendizado, mas a própria condição de existência nos espaços educacionais.

É nesse ponto que invoco o glitch - usado em contextos científicos a partir de 1940 - como metáfora e prática política. O glitch, entendido como falha, ruído, erro do sistema, mostra como os códigos não são perfeitos, como a ordem normativa pode ser interrompida. Ao invés de ser visto como defeito, o glitch pode ser uma força criativa e subversiva. Na educação, ele acontece quando o nome social desestabiliza o chamamento burocrático; quando o corpo não se ajusta à arquitetura dos uniformes ou dos banheiros; quando epistemologias trans, indígenas, negras ou crip deslocam o currículo eurocentrado.
Esses glitches são mais do que falhas: são potências. Eles revelam que a norma não é natural nem universal, mas sim uma operação de poder que precisa constantemente ser reparada para manter sua coerência. Ao assumir o glitch como estratégia, pessoas trans e aliadas transformam a experiência da falha em resistência criativa e em projeto pedagógico. A escola e a universidade, nesse sentido, podem deixar de ser espaços de adestramento para se tornar lugares de abertura ao inesperado, ao que não cabe, ao que se refaz.
A Conferência mostrou que políticas de gênero e educação não podem ser pensadas separadamente. Se discutimos feminismos interseccionais, direitos sexuais e reprodutivos, combate à violência e igualdade no trabalho, também precisamos falar sobre a escola como campo estratégico de disputa. É nela que se formam subjetividades, se consolidam ou se rompem preconceitos, e se delineia a possibilidade de um futuro menos violento para mulheres cis, travestis, com deficiencia e demais sujeitas dissidentes.

Antes de finalizar lembro que os caminhos de subversão frente às normatizações passam por assumir o glitch como pedagogia viva, que recusa o encaixe forçado e reivindica a diferença como condição de conhecimento. O glitch educacional é político: ao falhar, denuncia as estruturas excludentes; ao insistir, cria brechas de pertencimento; ao se multiplicar, reescreve as possibilidades de futuro. E foi justamente essa a sensação ao sair da Conferência: de que a educação, atravessada pelas políticas de gênero, pode ser glitch - não uma correção ou atualização do sistema, mas um travamento criativo que impede a continuidade da norma e abre espaço para outras formas de aprender, ensinar e existir.
Como venho refletindo em meus escritos acadêmicos e jornalísticos, a democracia não se desfaz apenas com tanques nas ruas. Ela morre lentamente, por dentro, como nos mostram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em Como as Democracias Morrem. Líderes eleitos corroem instituições, atacam a imprensa, desacreditam a oposição e normalizam a violência - e é nesse processo insidioso que vidas trans, lésbicas, negras, ciganas, PcD, refugiadas, e outras tantas já vulnerabilizadas, se tornam ainda mais alvo.
Na educação e(m) mídia, campo no qual atuo como professora, pesquisadora e militante, isso se traduz em dispositivos normativos que pretendem enquadrar corpos e subjetividades: matrículas que resistem ao nome social, currículos que silenciam epistemologias trans, indígenas, negras e crip, banheiros que expulsam ao invés de acolher. A educação, que deveria ser espaço de emancipação, é muitas vezes lugar de exclusão institucionalizada.

Para mim, o glitch se tornou linguagem para pensar a experiência trans na educação e na democracia: não como defeito, mas como potência criativa que expõe a falibilidade da norma. Na escola, ele se manifesta quando um corpo trans desestabiliza uniformes ou linguagens pré-fixadas; na democracia, quando uma travesti como eu ocupa GTs do governo federal - como o GT Intersexo, o GT da Memória LGBTI+ e o GT da Avaliação Biopsicossocial da Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania - abrindo brechas em estruturas historicamente cisheteronormativas.
Os sinais de alerta da erosão democrática são também os sinais do que vivemos diariamente: a rejeição das regras democráticas surge quando parlamentares tentam censurar debates de gênero; a negação da legitimidade do outro aparece no ataque sistemático a intelectuais travestis; a tolerância à violência ecoa nos altos índices de transfeminicídio; e a restrição das liberdades civis se confirma quando pesquisas sobre gênero são atacadas como "ideologia".
Contra isso, o glitch se apresenta como forma de resistência pedagógica e democrática. Ele denuncia exclusões, insiste em existir e multiplica ruídos contra a naturalização da desigualdade. Se, como escrevo em minha tese e em artigos jornalísticos, a travesti é convocada o tempo todo a "falhar" diante da norma, minha proposta é transformar essa falha em gesto político. Ser glitch, nesse sentido, é recusar o encaixe forçado e criar brechas de futuro.
Como intelectual travesti, professora universitária e jornalista científica, sei que minha presença nesses espaços é por si só um glitch democrático: uma falha na engrenagem da cisnormatividade que insiste em governar o Estado e a escola. Ao mesmo tempo, é a prova de que a democracia só se fortalece quando incorpora as vozes que historicamente foram excluídas de suas narrativas oficiais.

Por isso, acredito que os caminhos de subversão frente às normatizações, seja na educação, seja na política, passam por assumir o glitch como pedagogia viva e como prática de cidadania. O glitch não corrige a norma: ele a interrompe, a denuncia e a reinventa. Assim, seguimos não apenas sobrevivendo, mas ensinando e inventando modos outros de aprender, conviver e existir em democracia.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.