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Paola Jochimsen

Paola Jochimsen é doutoranda em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Mestre em Romanistik pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Membro do Coletivo Brasil-Alemanha pela Democracia.

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3 de outubro: a unidade alemã e os muros que ainda restam

Comemorar a data significa reconhecer que, sem a reunificação, a Alemanha ainda estaria cortada por uma fronteira que simbolizava o fracasso da liberdade humana

Bandeira da Alemanha (Foto: Reuters )

O Dia da Unidade Alemã (Tag der Deutschen Einheit) celebrado no dia 3 de outubro, costuma passar despercebido fora da Europa. Para os alemães (e deveria ser também para quem olha de fora) é um marco fundamental. Marca não apenas a reunificação formal de 1990, mas a vitória sobre uma divisão artificial que separou famílias, sonhos e trajetórias durante mais de quatro décadas. Para entender o peso dessa vitória, é preciso encadear o século XX com clareza e sem reduzir nada do que esteve em jogo.

A Alemanha foi a protagonista (mesmo que alguns discordem) do século XX do início ao fim. Saiu da Primeira Guerra (1914-1918) derrotada, com perdas territoriais e reparações que alimentaram crise e ressentimento. Mergulhou na ascensão do nazismo nos anos 30 e na Segunda Guerra (1939-1945) terminou com o país ocupado e moralmente em ruínas. Com a Guerra Fria, a Alemanha virou linha de frente entre Estados Unidos e União Soviética, e em 1949 nasceram duas Alemanhas, a República Federal da Alemanha (RFA), no Oeste e a República Democrática Alemã (RDA), no Leste. 

Há uma ironia histórica difícil de ignorar: a mesma Alemanha que sediou a Conferência de Berlim (1884–1885) e foi palco em que potências europeias desmembraram o continente africano com arrogância colonial, redesenhando destinos sem ouvir povos e etnias, acabaria, décadas depois, experimentando em casa a lógica de uma partilha imposta de fora. Após a guerra, não por escolha, o país foi dividido para servir de vitrine do confronto global: de um lado, um país ligado ao capitalismo; do outro lado, sob órbita soviética e que de democrática não tinha quase nada.

A construção do Muro de Berlim (1961) selou definitivamente a separação até que a fronteira interna caiu junto do muro em 1989 e no ano seguinte, em 1990, a unidade foi oficializada. Essa sequência de acontecimentos históricos importa porque mostra a dimensão do que se conquistou. Depois de tantas derrotas, ditaduras, guerras e separação, voltar a um mesmo Estado de direitos foi um passo civilizatório.

É curioso notar que, ainda hoje, exista quem lamente a queda do Muro de Berlim ou chore o fim da União Soviética. A essas pessoas, convém lembrar que nostalgia não é argumento válido. Ter saudade da RDA porque havia creche pública, moradia subsidiada ou emprego garantido é esquecer o custo real desse arranjo. Houve censura, polícia secreta (Stasi), fronteiras que matavam, uma liberdade reduzida a quase nada. Sim, o regime oferecia proteção social, mas era uma forma de prisão apresentada como segurança. A promessa de um comunismo humano e democrático não se materializou ali. E há um ponto essencial que não pode ser perdido de vista. Visitar a RDA como turista não era a mesma coisa que viver nela como cidadão. Turistas não carregavam dossiês, não tinham vizinhos informantes, não eram alvos de perseguição e não tinham seus direitos ceifados. A RDA foi uma ditadura e isso precisa ficar claro.

Dizer isso também não apaga o que veio depois, nem simplifica a história a um enredo de heróis e vilões. Coloca a unificação no seu lugar devido, pois foi um processo necessário, caro, rápido, desigual e, para muitos alemães do Leste, muito difícil. Empresas estatais foram liquidadas, milhões perderam empregos e a economia oriental precisou se reinventar a partir do quase nada. Até hoje, a diferença de salários e de oportunidades entre Leste e Oeste alimenta ainda hoje ressentimentos e a unidade jurídica de 1990 não apagou o abismo social nem o psicológico e essa ferida segue aberta.

O Brasil também tem seus próprios muros invisíveis

Para explicar isso aos brasileiros, vale um exercício de imaginação que não precisa de tanto exagero. E se o Brasil tivesse sido dividido ao meio, com um muro em Brasília separando duas nações, com famílias divididas, com passaportes distintos e com destinos impostos por nascimento? Embora alguns defendam isso, não houve muro físico no Brasil, mas há um muro que muitos conhecem, o da desigualdade regional. 

O Nordeste historicamente recebeu menos investimento proporcional, acumulou déficits de infraestrutura e de oportunidades e exportou gente talentosa para outras regiões. Esse movimento lembra, guardadas as proporções e os contextos, as assimetrias entre Leste e Oeste na Alemanha. Não existem dois países dentro do Brasil, embora às vezes pareça que sim. Trajetórias profissionais se encurtam quando decisões ficam concentradas em poucos polos. Assim como na Alemanha, derrubar esse muro pede política pública consistente, com investimento produtivo, com educação forte, com descentralização de decisões e com logística que encurte distâncias reais e simbólicas.

Há quem prefira romantizar o passado porque o presente é duro e porque as promessas da reunificação, no caso alemão, e da integração justa, no caso brasileiro, ainda não se cumpriram por completo. A solução não está em reconstruir muros, visíveis ou invisíveis. Está em enfrentá-los com método e com persistência. O desafio alemão é continuar derrubando os muros econômicos, sociais e culturais que ainda persistem.

Comemorar essa data significa reconhecer que, sem a reunificação, a Alemanha ainda estaria cortada por uma fronteira que simbolizava o fracasso da liberdade humana. Significa celebrar que, mesmo com desigualdades persistentes, todos os alemães podem hoje protestar, viajar, empreender e falar o que pensam sem medo da polícia política. Óbvio que a democracia não é perfeita, é barulhenta e é lenta, exige vigilância e cuidado, mas é infinitamente mais honesta do que o autoritarismo que promete o céu e entrega uma prisão. O Dia da Unidade Alemã é importante justamente porque não é um conto de fadas contado para acalmar consciências. É uma data que carrega a vitória sobre a divisão e o lembrete de que a verdadeira união leva tempo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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