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Washington Araújo

Jornalista, escritor e professor. Mestre em Cinema e psicanalista. Pesquisador de IA e redes sociais. Apresenta o podcast 1844, Spotify.

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Todos os dias a vida nos pede coragem

O Brasil toma as ruas contra privilégios parlamentares escandalosos e impunidade, em defesa da justiça, igualdade e da Constituição

Manifestações contra a anistia (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

Não é de hoje que o povo brasileiro tem transformado as ruas em palco de protestos por justiça e resistência coletiva. Há momentos na história de uma nação em que a paciência, como um copo cheio de injustiças, recebe a gota d’água que faz tudo transbordar. É nesse momento que o sentimento de enxugar gelo se esgota, e a indignação vira um rio que não cabe no leito. Tais episódios revelam a força da sociedade civil, que se mobiliza para corrigir rumos desviados por poderes instituídos.

Desde 1984, quando as marcas da ditadura ainda doíam, até os dias atribulados de 2025, o povo brasileiro marcha, não com ódio cego, mas com a chama da cidadania acesa. Eu, com os pés gastos e o coração na mão, conto essa crônica com um sorriso cúmplice, porque vocês, leitores, já sentiram ao menos uma vez a rua ficar rouca de tanto gritar por justiça. Essa narrativa conecta gerações, mostrando como a luta coletiva persiste apesar das adversidades políticas e econômicas.

Era abril de 1984, e eu, chefe de uma área operacional do Banco do Nordeste, na velha Rua do Rosário, no coração do Rio, vi a cidade despertar em festa. A Avenida Rio Branco, que liga Cinelândia à Presidente Vargas, amanheceu coberta de confetes e papel picado, lançados dos edifícios como se fosse carnaval. Chegar ao trabalho? Tarefa mais do que complicada! Ônibus despejavam milhares rumo à Candelária, no início da Presidente Vargas, para o comício das Diretas Já.

Ali, trezentas mil vozes se esgoelavam: “É agora ou nunca! Ditadura nunca mais! Voto direto já!”. Camisas amarelas – que, naquela época, simbolizavam o retorno de uma nação soberana – tremulavam com orgulho vibrante. “Liberdade sempre! Basta de opressão!”, se ouvia por todo lado, enquanto Tancredo, Lula, Ulysses e Brizola uniam o Brasil contra o colégio eleitoral. Eu morava em Botafogo, e afirmo: o Rio era mesmo maravilhoso. O povo acolhedor transformava tudo em roda de samba, e até as pedras do calçadão de Copacabana pareciam se mexer naqueles dias de novo despertar. Ser jovem ali era o melhor dos tempos. Explico: era melhor apenas por sermos jovens, mesmo quando a temporada era de uma pavorosa sombra verde-oliva nos espreitando. Aquela juventude enfrentava resquícios autoritários, mas não cansava de ter esperança em um futuro democrático.

Em 1992, o copo transborda outra vez. A mobilização contra Collor levou milhões às ruas, de Brasília a Salvador. Com máscaras de Zé Gotinha e cartazes com fundo preto – “Impeachment Já!” –, estudantes, metalúrgicos e donas de casa exigiam o fim da corrupção que esmagava os pobres. Não era só o confisco da poupança; era a luta por ética. O impeachment veio, e as ruas gritaram: o povo é guardião do poder. Esse episódio marcou a consolidação da democracia participativa, influenciando protestos futuros.

Em 2023, durante a tentativa de golpe de 8 de janeiro, quando golpistas alucinados invadiram e depredaram o Congresso, o Palácio do Planalto e a sede do Supremo Tribunal Federal, o Brasil reagiu com força. No dia 9, 50 mil pessoas – negros da Coalizão por Direitos, feministas e LGBTQIA+ – lotaram a Avenida Paulista, clamando: “Democracia sim, ditadura não!”. Em Salvador, baianas marcharam pela resistência; em Porto Alegre, gaúchos exigiram igualdade. 

E agora vejo o Brasil que pensa no futuro ir às ruas novamente, em atos contra a impunidade e em repúdio a decisões do Congresso que traem a Constituição de 1988, criando dois Brasis: um que presta contas à justiça e outro, de parlamentares, intocável. Esses movimentos recentes destacam divisões sociais profundas, mas também a necessidade do engajamento indispensável da população brasileira.

Esse rio já parece não caber no leito tende a ser caudaloso, leitores, é o Brasil vivo. E é muito bom rever o engajamento dos artistas antenados voltar às ruas com seus cabelos brancos, olhos cansados e sorrisos na cara. Alguns poucos da nova geração poderão aprender com eles, enquanto outros continuarão no ostracismo cidadão a que se aprisionaram. Alô, alô, sertanejos, ainda há tempo. Só um lembrete. A participação cultural enriquece esses atos, unindo tradição e inovação.

De 1984 a 2025, o povo não quer reis; exige igualdade, liberdade, humanidade. Cuidado: se a justiça for negada, o copo não vai parar de transbordar.

Eu, que vi essas marchas, digo com entusiasmo: a democracia é nossa conquista diária, forjada no suor e esperança. Essa trajetória reforça a necessidade de vigilância constante.

Preciso dizer que, em toda a minha vida, nunca participei da política partidária, nunca fui afiliado a qualquer partido político, e sei que nunca o serei. É que me concedo o direito de ser livre pensador, firme na crença de que “a mais amada entre todas as coisas é a justiça”. Isso não quer dizer que ficarei em cima do muro esperando que ele se mova. 

Ser coerente em tempos de incoerência dá um trabalho danado de grande. 

Mas no fundo é isso que vale a pena, porque o que a vida exige da gente é coragem. Vai aqui um salve para Guimarães Rosa!

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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