Soberania energética: desafios e perspectivas do século XXI
'O controle sobre recursos energéticos define não apenas a competitividade econômica, mas também a autonomia política dos países', escreve Fernando Horta
A soberania energética refere-se à capacidade de um país controlar sua política energética de forma autônoma, garantindo segurança no abastecimento e independência na tomada de decisões estratégicas sobre suas fontes de energia. Essa soberania influencia diretamente a vida do cidadão em aspectos fundamentais: primeiro, no preço da energia elétrica residencial, que representa uma parcela significativa do orçamento familiar e pode determinar o acesso básico à eletricidade; segundo, na estabilidade do fornecimento energético, onde falhas no sistema podem provocar apagões que paralisam atividades econômicas, comprometem serviços de saúde e afetam o funcionamento de equipamentos essenciais nas residências.
A América Latina tornou-se palco de uma intensa disputa geopolítica entre Estados Unidos e China pelo controle do setor energético regional, configurando uma verdadeira guerra "secreta" por influência estratégica. Os investimentos diretos estrangeiros chineses em energia renovável na América Latina triplicaram de US$ 960 milhões para US$ 3,8 bilhões entre 2018 e 2022, com a região concentrando um terço dos investimentos globais chineses em energia eólica e solar.
Em resposta, os Estados Unidos tramitam no Congresso a Lei de Investimento Comercial, que contempla US$ 14 bilhões em investimentos na América Latina, visando ampliar o nearshoring[1] e conter a crescente influência econômica chinesa na região. Essa competição se manifesta claramente nos dados: enquanto o investimento direto estrangeiro chinês na América Latina atingiu uma média de US$ 14,2 bilhões anuais entre 2010 e 2019, com o Brasil recebendo 42% do total (US$ 78,6 bilhões), os americanos intensificaram seus esforços para recuperar terreno perdido após uma década de relativo afastamento da região.
O sistema energético brasileiro passou por transformações profundas a partir do final dos anos 1990, marcadas por um vil programa de privatizações que remodelou completamente a estrutura do setor elétrico nacional. A primeira privatização ocorreu em 1995 com a venda da Espírito Santo Centrais Elétricas (Escelsa), seguida pela criação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) em 1997 para regular o setor[2].
Durante a década de 1990, cerca de 80% das empresas distribuidoras de energia foram privatizadas nacionalmente, enquanto apenas 20% das geradoras passaram para o controle privado estrangeiro. Esse processo foi fundamentado no tripé competição, privatização e regulação, visando introduzir mecanismos competitivos na geração e comercialização de energia, além de estimular a eficiência econômica através da regulação nos segmentos de distribuição e transmissão. As mudanças também incluíram a criação do Mercado Atacadista de Energia (MAE) em 1995 e a promulgação da Lei das Concessões no mesmo ano, estabelecendo o marco regulatório para a desestatização do setor. A realidade nacional mostra que se tais esforços pela competição e melhores serviços foram de boa fé (o que se duvida), não deram certo.
A Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobrás), fundada em 1962 como holding das empresas regionais de energia elétrica (Eletronorte, Chesf, Furnas e Eletrosul), teve como objetivo inicial coordenar o planejamento e desenvolvimento do sistema elétrico nacional durante o período desenvolvimentista. Em junho de 2022, a empresa foi privatizada através da maior operação de desestatização do país em duas décadas (uma entrega quase criminosa), movimentando R$ 33,7 bilhões e reduzindo a participação estatal de cerca de 65% para aproximadamente 43%.
Atualmente, existe uma disparidade crítica na estrutura acionária: embora o governo brasileiro continue sendo o maior acionista individual da empresa privatizada, perdeu o controle efetivo da companhia e seu poder de voto foi reduzido a apenas 10%, muito abaixo de sua participação societária real. Essa situação gera tensões constantes entre o governo e a empresa, especialmente após incidentes como o apagão de 2023, que teve origem numa falha de transmissão da Eletrobrás, levando a questionamentos sobre demissões em massa (1.500 funcionários) e redução da força de trabalho especializada. O governo possui uma "golden share" que garante poder de veto em decisões estratégicas, mas na prática enfrenta limitações significativas para influenciar a gestão operacional da maior empresa de energia da América Latina.
A discussão sobre soberania energética torna-se cada vez mais relevante no século XXI e será decisiva para o futuro das nações, exigindo ações concretas e urgentes dos governos. O cenário geopolítico atual, marcado por disputas tecnológicas, mudanças climáticas e instabilidade internacional, demonstra que o controle sobre recursos energéticos define não apenas a competitividade econômica, mas também a autonomia política dos países.
É fundamental que os Estados recuperem a capacidade de planejamento estratégico de longo prazo no setor energético, garantindo que a população tenha acesso a energia limpa, abundante e a preços justos. Isso requer investimentos massivos em fontes renováveis, desenvolvimento de tecnologias nacionais, formação de recursos humanos especializados e, sobretudo, políticas públicas que priorizem o interesse nacional sobre os lucros privados.
A proteção do meio ambiente deve ser central nesse processo, promovendo uma transição energética justa que não apenas reduza emissões de carbono, mas também democratize o acesso aos benefícios da energia limpa. O século XXI demandará dos governos coragem para enfrentar interesses estabelecidos e implementar reformas que coloquem a soberania energética a serviço do desenvolvimento sustentável e da justiça social.
[1] Nearshoring é uma estratégia empresarial onde as companhias transferem suas operações ou terceirizam serviços para países geograficamente próximos, em vez de locais muito distantes (offshoring) ou manter tudo internamente (inshoring).
[2] Há inúmeras críticas e discussões sobre o papel das “agências reguladoras” e mais ainda sobre a Aneel. Talvez, o modelo das “agências” reguladoras precise ser revisto para evitar que defendam os interesses privados do setor em vez dos direitos da população.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: