Salvem o meu bebê reborn!
Há uma 'falência emocional' em uma sociedade marcada pela idiotice, analisa o colunista Nêggo Tom
Uma crônica sobre a decadência cognitiva e a falência emocional de uma sociedade idiotizada.
Estava este angustiado escriba fazendo compras no supermercado, quando me deparei com um sururu dos infernos na seção de leite em pó. Curioso, me aproximei da pequena multidão que ali se aglomerava para saber o que acontecia. Enquanto me aproximava do furdunço, eu ia conjecturando os possíveis motivos daquela aflitiva reunião de pessoas. Será que o preço do leite em pó disparou? Será que a Virginia Fonseca está aqui ensinando os clientes da rede a fazerem apostas na sua Bet? Será uma briga pela última lata de leite na promoção? Ao chegar no centro daquele pequeno furacão humano avistei uma mulher sentada no chão aos prantos e segurando um bebê no colo. Logo deduzi que a coisa era muito mais grave do que as minhas especulações poderiam imaginar.
- Pelo amor de Deus! Chamem uma ambulância. Meu bebê está com muita febre e seus olhos estão paralisados. - Gritava a mãe.
- Ele tomou mamadeira antes de sair de casa? Pode ser fome. - Palpitou uma senhorinha que estava pesando uma sobrecoxa no açougue e veio correndo para ver o tumulto.
- Isso é efeito colateral da vacina contra a covid para bebês. Bolsonaro nos avisou sobre isso. - Comentou um senhor vestindo uma camiseta com estampa de pneu, enquanto empilhava latas de leite condensado no seu carrinho.
- O senhor me mostra que isso é um espírito mal, minha filha! Seu bebê precisa aceitar Jesus enquanto há tempo. Of the king the power the best plac tatac tatac plac plunct plact zum - Disparou uma mulher vestida feito uma capa de botijão de gás, que começou a rodopiar como um pião pela seção e fazer latas de leite em pó saltarem das prateleiras num avivamento lácteo.
- Esse bebê está pagando pelos pecados que cometeu em vidas passadas. Ele deve ter assaltado um supermercado em Paris em outra vida, e reencarnou brasileiro para espiar o mal que provocou. Coitado! – Espiritualizou uma mulher com a elegância da Glória Kalil, o tom de voz da Odete Roitman e a expressão facial da Soraya Thronicke.
- O seu bebê é de esquerda? – Perguntou um sujeito barbudo, mal encarado e com pinta de miliciano, que ofereceu ajuda se apresentando como assessor de um deputado federal. – Se for petista eu não ajudo. – Completou com ódio no olhar.
- Mas que pergunta mais idiota é essa? Tinha que ser bolsonarista. – Replicou um capricorniano, interrompendo a soma que fazia do valor dos três produtos que estava no seu carrinho.
- Este bebê deve estar sofrendo os efeitos do processo de separação dos pais. – Avaliou uma psicóloga, gesticulando em círculos com uma barra de chocolate na mão.
- Chega o bebê um pouco mais para a direita e levanta a cabeça dele, para eu enquadrar melhor o rosto dele. – Pediu um jovem que transmitia ao vivo aquele sofrimento pelas redes sociais.
- Mãe? Fique tranquila! Eu sou pediatra e vou lhe ajudar. – Tranquilizou uma mulher com roupa de treino, que segurava 3 potes de whey protein na mão de direita e conduzia um carrinho de bebê com um poodle dentro com a mão esquerda.
Espera um pouco. Um poodle dentro de um carrinho para bebês? Será que eu vi direito? Enquanto desembaçava as vistas para constatar novamente o meu espanto, a tal pediatra começa a prestar socorro ao bebê e logo constata:
- Ele está sem vida. Sinto muito.
O locutor do supermercado logo anuncia o óbito e pede um minuto de silêncio aos presentes. A consternação era geral. Eu, mesmo estando movido por uma dúvida atroz com relação a morte daquele bebê, fiz o sinal da cruz por precaução. A mãe estava aos prantos e não parava de repetir:
- O meu bebê não! Salvem o meu bebê!
Todas as 38 operadoras de caixa interromperam o seu trabalho e se puseram de pé a aplaudir o bebê falecido. O segurança do estabelecimento estava tão consternado com o ocorrido, que até se esqueceu de perseguir um jovem preto que acabara de se dirigir a seção de biscoitos. Percebendo a emoção e a distração do segurança, uma mulher branca com pinta de madame enchia a sua necessarie de barrinhas de cereal, enquanto simulava um choro compulsivo pela passagem de tão neófita criatura. O gerente do estabelecimento, movido por uma espécie de neoliberalismo sentimental, pediu para que o locutor anunciasse uma promoção relâmpago de velas, para que os clientes pudessem acender as suas condolências ao bebê.
Eu continuava observando tudo com um sentimento de que nada daquilo poderia, de fato, estar acontecendo. Não é possível! Tem algo errado nessa história. Desconfiança que se confirma ao ouvir a pediatra ratificar o seu diagnóstico com mais uma observação:
- Isso é só uma boneca de brinquedo.
- Não chame a minha filha de boneca de brinquedo. Respeite a dor da mãe de uma bebê reborn. – Rebateu a mãe do bebê...
Bebê o quê? Mas que diabo é isso?
- Isso é uma boneca realista feita de silicone que tem sido adotada por alguns adultos como bebês de verdade. – Explicou a pediatra.
Enquanto a multidão se dividia entre apoiar e querer matar a mãe daquele bebê, após a revelação feita pela pediatra, eu pensava se poderia confiar no diagnóstico de uma médica que transporta um poodle num carrinho de bebês? Será que ela também não seria uma pediatra reborn? Será que todos neste supermercado são pessoas reborns? Movido por mais esta desconfiança, me aproximei da mãe e do seu bebê para me certificar de que não estava tendo um pesadelo. A mulher me olhou com uma tristeza profunda e disse:
- Moço! Salva o meu bebê reborn?
Eu tentei, mas não consegui acordar.
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