O que mudou foi o modo de matar nas guerras, não a tragédia de morrer
Em 25 anos, as guerras trocaram trincheiras por algoritmos, tanques por drones, mas continuam produzindo as mesmas ruínas humanas
Em abril de 2003, as ruas de Bagdá tremiam com o avanço dos tanques M1 Abrams. Sob o sol escaldante do Iraque, soldados americanos travavam combates corpo a corpo contra insurgentes. Era a imagem clássica da guerra convencional: poeira, tiros, explosões, suor e morte.
Hoje, junho de 2025, a guerra tem um novo rosto.
Na mesma região do Oriente Médio, mas com outra roupagem, operadores israelenses sentados em salas refrigeradas controlam drones que sobrevoam o Irã. Enquanto isso, o sistema Domo de Ferro intercepta mísseis no céu. Tudo acontece a partir de centros de comando digitalizados, onde a guerra se desenrola em telas, algoritmos e radares.
No dia 12 de junho de 2025, Israel lançou ataques aéreos contra instalações nucleares em Natanz, marcando o início de um novo confronto com o Irã. Em resposta, Teerã disparou mísseis que atingiram Tel Aviv e Haifa. Em poucos dias, 246 pessoas morreram. A maioria civis. O impacto foi imediato, global, devastador.
Vamos tratar aqui da transição que os conflitos atravessaram ao longo do século XXI e buscar entender como a guerra saiu do corpo-a-corpo e das trincheiras para se tornar uma operação remota. Tudo mudou para permanecer igual: toda a guerra não passa de fábrica de cemitérios e tantos custos humanos. Financeiros crescem sempre de maneira exponencial.
Do chão ao comando remoto
A guerra do início dos anos 2000 era física, brutal, visível. A invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, exemplifica esse padrão: 4.431 militares americanos mortos. Entre 187 mil e 211 mil civis iraquianos perderam a vida, segundo o Iraq Body Count. A destruição de cidades como Fallujah, Mosul e Bagdá foi imensa.
A reconstrução foi estimada em US$ 88 bilhões pelo Banco Mundial. E o custo total da guerra, incluindo a presença militar, infraestrutura e veteranos, ultrapassou US$ 2 trilhões, segundo o projeto Costs of War, da Universidade Brown.
Mas os conflitos evoluíram.
Na Ucrânia, desde 2022, drones se tornaram protagonistas. O turco Bayraktar TB2 e o iraniano Shahed-136 substituíram tanques e aviões tripulados. Segundo o New York Times, cerca de 80% das baixas russas nos dois primeiros anos da guerra vieram de ataques de drones ucranianos — muitos operados a quilômetros de distância.
Em Israel, o Domo de Ferro, sistema antimíssil de última geração, intercepta cerca de 90% dos foguetes e drones lançados contra o país. No atual conflito com o Irã, tem sido decisivo para minimizar baixas civis — embora ainda haja falhas.
Essa transformação é sustentada por inteligência artificial, sensores térmicos, conectividade via satélite e análise de dados em tempo real. Na Ucrânia, o sistema Kropyva processa informações de vigilância em minutos e permite contra-ataques quase instantâneos.
A guerra deixou de ser uma marcha de botas e passou a ser uma dança entre códigos e sinais. A fumaça dos tanques foi substituída pelo silêncio das salas climatizadas. Mas o cheiro de morte permanece.
Contudo, a automação não anula o sofrimento humano.
Até 16 de junho de 2025, o Irã havia registrado 224 mortos e 1.277 feridos no conflito com Israel. Do lado israelense, os números chegavam a 22 mortos e 390 feridos. Entre as vítimas, muitas eram crianças.
A guerra moderna é mais tecnológica — mas não menos letal.
O preço da guerra: do dinheiro ao sangue
Nos primeiros anos do século, as guerras custavam vidas e bilhões de dólares. O Afeganistão, entre 2001 e 2021, registrou 2.461 militares americanos mortos e cerca de 70 mil civis afegãos mortos. A reconstrução do país demandou US$ 145 bilhões.
Somando Iraque e Afeganistão, os Estados Unidos gastaram entre US$ 4 trilhões e US$ 6 trilhões em duas décadas de guerra. Um peso orçamentário que atravessou governos e gerações.
O impacto humano foi permanente: mortes em grande escala amputações, traumas psicológicos, orfandade, cidades em ruínas, populações inteiras deslocadas.
Como escreveu a jornalista Anna Politkovskaya, “a guerra nunca é só sobre armas; ela destrói a confiança, a compaixão, a memória”.
Os custos das guerras tecnológicas
Hoje, o preço não desapareceu — apenas mudou de forma.
O sistema Domo de Ferro custa cerca de US$ 100 milhões por bateria. Cada míssil Tamir interceptador vale entre US$ 40 mil e US$ 50 mil. Um único ataque pode consumir dezenas deles.
Na Ucrânia, a ajuda internacional superou US$ 407 bilhões desde 2022, com grande parte destinada à compra de drones, mísseis, satélites e sistemas de comando.
No recente conflito entre Israel e Irã, Israel mobilizou 200 caças e lançou mais de 330 mísseis em menos de 72 horas. Um custo operacional altíssimo — sem contar os danos civis e estruturais causados nos dois países.
As guerras digitais, por mais limpas que pareçam, ainda deixam rastros de sangue. As telas não mostram o calor dos corpos que tombam. Os gráficos escondem o desespero das mães diante dos escombros.
Feridas abertas nas cidades e nos corpos
A guerra tradicional arrasava cidades. Bombardeios em Bagdá, Cabul, Grozny e Aleppo destruíram hospitais, mesquitas, escolas e mercados. A reconstrução foi lenta e, em muitos casos, jamais concluída.
No Iraque, entre 2003 e 2011, estima-se que 3 milhões de pessoas foram deslocadas. No Afeganistão, o número ultrapassou 5 milhões.
Esses conflitos deixaram marcas não apenas físicas, mas psíquicas: gerações inteiras cresceram entre ruínas e trincheiras.
Em muitas cidades destruídas, o único som constante era o eco dos passos de quem ainda buscava parentes sob os escombros.
A precisão que também mata
Na guerra moderna, a destruição é seletiva, mas ainda brutal.
Na Ucrânia, 40 mil civis morreram ou ficaram feridos desde 2022. Em Kharkiv, prédios residenciais foram reduzidos a escombros por drones e artilharia.
Em Gaza, a guerra tem um nome: permanência. A Faixa é alvo recorrente de bombardeios que destroem infraestrutura civil básica — hospitais, escolas, redes de esgoto. Mesmo com armamentos de precisão, os impactos são devastadores: segundo a ONU, cerca de 70% dos mortos em ofensivas recentes são mulheres e crianças. A densidade populacional transforma cada explosão em massacre. Gaza não é apenas cenário de guerra — é laboratório da impunidade.
No conflito entre Israel e Irã, os ataques israelenses atingiram instalações nucleares em Natanz e depósitos de petróleo. Já os mísseis iranianos danificaram prédios civis em Tel Aviv e Haifa. Em ambos os lados, famílias perderam casas, negócios, entes queridos.
A dor é menos visível, mas não menos intensa.
E há um detalhe ainda mais cruel: nas guerras digitais, o ataque muitas vezes é transmitido ao vivo, em alta definição. Morre-se, agora, diante de uma câmera, enquanto milhões assistem em tempo real.
O crescimento dos arsenais letais
O século XXI trouxe uma explosão de inovação bélica.
A Rússia opera drones Shahed-136 — fornecidos pelo Irã — que custam entre US$ 48 mil e US$ 193 mil. Seus mísseis hipersônicos Kinzhal, usados contra a Ucrânia, valem cerca de US$ 10 milhões cada.
A Ucrânia se apoia no drone turco Bayraktar TB2 (US$ 5 milhões) e em drones FPV improvisados que custam pouco mais de US$ 1.000 — mas são capazes de paralisar colunas russas.
Israel investe pesadamente em tecnologia defensiva. O Domo de Ferro já salvou milhares de vidas. Seus drones Harop, que operam como kamikazes eletrônicos, custam entre US$ 100 mil e US$ 500 mil.
O Irã responde com seus próprios drones, como o Ababil e o Shahed, além de mísseis balísticos como o Fateh-110.
Na Caxemira, Índia e Paquistão disputam território com mísseis supersônicos BrahMos (US$ 2,5 milhões) e sistemas de defesa chineses HQ-9.
Essas armas são frutos de orçamentos bilionários, mas também de escolhas políticas. Cada drone lançado é uma oportunidade de diálogo perdida.
A falência diplomática no século da tecnologia
Se as armas avançaram, a diplomacia parece ter regredido.
A Organização das Nações Unidas, criada após a Segunda Guerra Mundial para impedir conflitos, tem sido uma espectadora constrangida da atual desordem global. Embora decepcionante em sua atuação e efetividade para impedir guerras, a ONU é melhor que exista do que o contrário. Ruim com ela, pior, muito pior sem ela.
Desde 2022, o Conselho de Segurança fracassou em conter a invasão da Ucrânia, a escalada entre Israel e Hamas, e agora o confronto direto entre Israel e Irã — ambos países com capacidades militares avançadas e conexões com potências nucleares.
As resoluções não passam. Os vetos se repetem. E os discursos esvaziam a esperança.
As potências não apenas ignoram o direito internacional: em muitos casos, o redesenham conforme seus próprios interesses. A guerra, em vez de ser evitada, é muitas vezes autorizada informalmente nos bastidores da geopolítica.
A diplomacia, que deveria ser o escudo da humanidade, tornou-se refém de algoritmos de conveniência.
A urgência da paz
A guerra tradicional arrasava tudo: pessoas, cidades, culturas. A guerra moderna foca em precisão, mas o sofrimento permanece.
Mísseis podem ser inteligentes, mas ainda caem sobre lares. Drones podem ser controlados à distância, mas ainda tiram a vida de crianças. Os custos mudaram — menos soldados mortos, mais bilhões gastos com algoritmos e sensores.
No conflito entre Israel e Irã, em apenas cinco dias, 246 pessoas morreram. A maioria era civil.
Enquanto os arsenais crescem e as tecnologias se sofisticam, a humanidade precisa escolher outro caminho. Não se trata apenas de evitar a guerra, mas de construir a paz como projeto real, prático, institucional.
É hora de investir mais em mediação, diálogo, confiança mútua e acordos sustentáveis. A tecnologia pode proteger, mas só a humanidade salva.
Em 25 anos, a guerra deixou de ser uma marcha sobre desertos para se tornar um clique sobre mapas digitais. O inimigo, antes visível e temido, agora é um ponto vermelho em uma tela.
Mas o sangue ainda é o mesmo. As lágrimas, as ausências, as casas destruídas — tudo isso permanece. O que mudou é o modo como se mata, não a tragédia de morrer.
Se queremos preservar nosso próprio futuro, devemos exigir mais do que eficiência militar. Precisamos de eficiência moral, política e espiritual.
Porque nenhuma vitória justifica a morte de inocentes. E nenhum avanço tecnológico justifica a falência da humanidade.
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